quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Capítulo I - A Noite Anterior - Londres

Quando ele tocou o cartão pré-pago na catraca do metrô já passava da meia-noite. O cartaz afixado próximo às escadas rolantes mostrava que o último trem em direção a Kings Cross passaria em 2 minutos. Ele apressou o passo, desceu os dois lances de escadas rolantes correndo,  junto dele vários outros corriam tentando chegar até a plataforma antes do trem.

O trem estava lotado de pessoas barulhentas, algumas vestidas em roupas de festa e muitas delas bêbadas. “Cuidado com o vão, cuidado com o vão” – dizia uma voz pelo alto falante. Ele entrou no vagão, pulando o vão e logo o trem fechou suas portas e partiu. A pequena porta que ligava um vagão ao outro foi aberta espalhafatosamente. Um homem alto, magro, com barba por fazer, sujo, bem sujo e carregando nas mãos uma mochila mais imunda começou a falar em um inglês bem pronunciado e pausado, porém com um forte sotaque irlandês:

- Senhoras e senhores, desculpem-me mas eu estou aqui perturbando porque não tenho outra opção. É melhor pedir do que roubar. Preciso juntar quatro libras pra conseguir pagar o albergue e até o momento não tenho nada mais do que vinte e cinco pences...

 “É melhor pedir do que roubar”, ao ouvir isso imediatamente sua mente viajou vinte e cinco anos no tempo, parecia ouvir o pedinte entrando no ônibus da TCB que trafegava pela via W3. “Pobres são iguais em todo o mundo” - pensou ele enquanto buscava uma moeda no bolso. “E, esse precisa de um banho, fede mais a álcool que todos os outros passageiros.” – concluiu o pensamento esboçando um leve sorriso enquanto depositava uma moeda nas mãos do pedinte.

Ele havia conseguido sair de West End, mas ainda teria de conseguir chegar a Kings Cross a tempo de trocar de linha e pegar o outro trem.  Quando finalmente o trem parou em Kings Cross, muita gente desceu, muita gente queria subir. Organizadamente, mesmo com o alto teor etílico, todos os que estavam na plataforma esperaram os passageiros desembarcarem para depois começarem a embarcar no trem. A organização do caos era surpreendente naquele lugar.

Mind the gap. Cuidado com o vão”, dizia a voz no alto falante. “Este é o último trem de hoje da Linha Picadilly. Os últimos trens das Linha do Norte e da Linha Vitória partirão em um minuto”.

Ele ainda tinha um minuto para chegar até a plataforma da Linha do Norte. Era tanta gente lenta e cambaleante à sua frente que foi preciso empurrar alguns e abrir espaço para conseguir chegar até as escadas rolantes, descer mais dois níveis correndo, e finalmente chegar na plataforma correta. O metrô já estava anunciando a partida. Ele correu, entrou e as portas do trem se fecharam atrás dele.

Yes! – Disse ele em voz alta – feliz e contente por ter conseguido fazer a baldeação, Enquanto o trem partia era possível ver alguns outros usuários chegando à plataforma, xingando, chutando o ar e chorando por terem perdido o último trem.

Três minutos depois chegou à estação Angel. Saiu do trem, venceu a multidão que tentava embarcar, andou em direção à saída, andou, andou e andou. As estações do “tube”, como chamavam o metrô por ali, eram muito profundas e distantes das entradas e saídas para a rua, muitas vezes demorava-se mais para entrar e sair de uma estação do que a viagem de trem propriamente dita. Subiu escadas, andou mais um pouco, subiu outras escadas, e deparou-se com aquela que era a mais longa de todas as escadas rolantes da Europa - e ela estava desligada. Respirou fundo e começou a subir a longa escalada de quase 30 metros de altura. “Uns dez andares”, pensou ele olhando para as outras escadas e notando que ninguém descia, a estação já estava fechada.

Tocou o cartão pré-pago na catraca e ela abriu-se. Apenas uma das portas da estação estava aberta, e na frente dela um guardinha impedindo as pessoas de entrarem. Ele saiu e deparou-se com uma pequena multidão do lado de fora. Algumas pessoas desconsoladas choravam por terem perdido o último trem, outras riam e a maioria apenas bebia. Alguns desorientados procuravam rotas de ônibus e outros simplesmente ficavam lá olhando pro “antonti”. Ele passou por entre elas, passou em frente ao PubAngel Inn”, que dava nome à estação, desceu a City Road, à medida em que ele se afastava da estação,  a rua ia ficando mais calma e mais vazia, passou pelo canal, virou à esquerda numa rua pequena e buscou a chave no bolso do paletó.

Abriu o portão do prédio, verificou a caixa de correspondência – só contas e propagandas. Colocou tudo de volta na caixa, – outro dia eu pego – pensou ele, cansado e ainda um pouco tonto. Subiu as escadas, e abriu a porta do apartamento, largou o paletó do terno em cima do sofá, tirou a gravata jogando-a sobre a mesa e foi para o quarto.

Olhou para a cama macia e quentinha. “Como seria bom dormir agora”, pensou. Mas resolveu arrumar as malas, o melhor era não dormir aquela noite, pois sabia que correria o risco de não acordar às 3h30 da madrugada. Aquele vazio e aquele silêncio da casa eram como convites para dormir, mas ele ainda teria de arrumar malas e tomar banho antes de viajar.

“Viajar. Viajar. Viajar.”  Pensou ele alegremente. E não havia sido essa a principal razão dele ter escolhido Londres como base para suas aventuras? Para ele viajar era como viver, e se havia algo que ele sabia fazer, era viver intensamente.

Morar em Londres pode ser caro e complicado, mas tem suas vantagens, acreditava  ele, era o centro do mundo moderno. Dos seus cinco aeroportos partem vôos para toda e qualquer parte do globo, nenhuma outra cidade no mundo tem o movimento que os aeroportos de Londres proporcionam à capital inglesa. Com pouco de tempo e pouco dinheiro era possível ir para qualquer canto da Europa, com um pouco mais de tempo e um pouco mais de dinheiro, o mundo todo estava ali, ao alcance dos vôos. Dos aeroportos de Londres para o mundo é fácil, sorria ele enquanto colocava uma mala azul vazia sobre a cama, o problema era sair de Londres e chegar nos aeroportos.

Eu prometi a mim mesmo que não mais pegaria o primeiro vôo da manhã. Mas sempre o faço”, reclamou em voz alta para si mesmo enquanto olhava para uma calça jeans e decidia se ela iria para dentro da mala ou voltaria para o armário. Dobrou a calça e deixou-a de lado, ali na cama, adiando a decisão – duas calças já seriam mais que suficientes, jogou algumas meias e cuecas dentro da mala, uma para cada dia, pegou uma outra camisa, dobrou-a e colocou-a na mesma mala, olhou pra calça que havia rejeitado e colocou-a na mala também. Contou mais uma vez o número de peças de roupa e deu-se por satisfeito. Fechou a mala com orgulho pois pela primeira vez conseguira fazer apenas uma mala com razoavelmente pouca roupa – pelo menos para ele três calças, três camisas, quatro camisetas, um casaco, quatro cuecas, uma bermuda, quatro meias, um tênis e um sapato era pouca coisa para uma viagem de quatro dias.

Separou o os tíquetes de vôo, o passaporte e as liras turcas que havia comprado, colocou tudo ao lado da cama em um lugar bem visível para não esquecer. Pegou alguns dólares, algumas libras esterlinas e alguns euros e colocou junto das liras. “Seguro morreu de velho”, pensou ele lembrando da frase que seu pai dizia sempre. Olhou para a mala mais uma vez satisfeito. Separou mais uma roupa para a viagem, tomou um banho demorado e colocou a roupa escolhida. Tudo pronto e não eram três horas da manhã ainda.

Apagou a luz do quarto, acendeu a luz da cozinha, Ligou a chaleira elétrica, colocou um CD do Balaio pra tocar. Sentou-se esperando a água ferver. O frio lá fora parecia realmente forte. O verão havia até sido generoso aquele ano, tiveram pelo menos duas semanas de calor, e uns quatro ou cinco fins-de-semana com um pouco de sol, mas agora que o outono chegava, tudo mudava. Escurecia mais cedo, as pessoas se recolhiam mais cedo, o mundo voltava a ser frio.

Da sua janela conseguia ver a rua principal lá no fundo, e tanto a sua própria rua, como a outra acolá pareciam vazias e geladas. Um ou outro carro passava pela City Road, táxis pretos e ônibus vermelhos quebravam o silêncio e o vazio, mas desapareciam tão rápido que o vazio e o silêncio pareciam ainda maior. Vez ou outra um pedestre passava, cambaleando e equilibrando-se, normalmente com uma garrafa de cerveja ou um copo na mão. A metrópole agitada e palpitante de algumas horas atrás dava lugar a uma cidade pacata e silenciosa. Londres era assim, diferentemente de São Paulo e Nova Iorque, a cidade parecia descansar durante a noite.

A chaleira desligou-se sozinha, anunciando que a água estava quente. Ele levantou-se, pegou uma caneca, um saquinho de chá, colocou o saquinho dentro da caneca e derramou a água sobre o chá na caneca. O chá espalhava sua cor pela água quente bem lentamente, uma pressionada no saquinho com uma colher, fez a água ficar completamente escura. “Preferiria tomar um café”, pensou ele, “mas dá muito trabalho”. Retirou o saquinho, deixou-o ao lado da pia e pôs alguns pingos de leite no chá. Pegou a caneca e sentindo o calor que vinha dela, segurou-a também com a outra mão, carregando-a com as duas mãos até a mesa sob a janela como se fosse algo muito precioso e frágil. Sentou-se novamente assistindo passivamente o movimento de táxis, ônibus e bêbados enquanto lentamente apreciava o chá.

O tempo voou, já passavam das 3 da manhã. Levantou-se rapidamente.  Lavou a caneca, jogou o saquinho de chá usado no lixo, desligou o CD que tocava, colocou o iPod no bolso da camisa, vestiu o sobretudo, pegou a mala, as chaves de casa e saiu. Desceu as escadas que conduziam até a rua e já quando alcançara o lado de fora, na porta de casa, verificou pela última vez se estava com tudo que era necessário em uma viagem internacional: tíquetes, dinheiro, passaporte. - “tickets, Money, passport” disse em voz alta, relembrando o que tinha visto num seriado de televisão. Riu de si mesmo, abriu a porta novamente, subiu as escadas, voltou ao quarto e pegou o dinheiro, os tíquetes e o passaporte. Pôs tudo no bolso do sobretudo, abriu a porta novamente, olhou pra dentro de casa como quem olha para um lugar pela última vez, e, despedindo-se da casa vazia saiu novamente.

Enquanto caminhava pela rua escura e gelada em direção à rua principal ia rezando o “santo anjo” ao mesmo tempo em que pensava na jornada que faria até o aeroporto de Heathrow. Um ônibus e dois trens depois e estaria lá no infame Terminal 5, recém-inaugurado e cujo primeiro mês foi simplesmente um caos. Milhares e milhares de bagagens desaparecidas, vôos cancelados, sistemas inoperantes.

No ponto de ônibus o letreiro luminoso mostrava que o ônibus 205 chegaria em 7 minutos. Serão 7 minutos muito frios... pensou ele.

Londres depois da meia-noite é mesmo outra cidade. O sistema de metrô da cidade, embora antigo e nem sempre limpo, espalha-se por todos os cantos da metrópole. São 270 estações espalhadas por mais de 400 quilômetros de trilhos, servindo a população há mais de cem anos. Conhecer o sistema metroviário da cidade é essencial para a sobrevivência no dia-a-dia, porém à meia-noite tudo se transforma e o que era sabedoria durante a luz do dia passa a valer nada na madrugada.

A cidade louca e agitada do dia dorme e uma outra Londres aparece, não menos louca, mas pacífica. As coisas começam a mudar logo depois das cinco da tarde, poucos sinais começam a aparecer, as pessoas saem dos escritórios, andam até a estação de trem ou de metrô mais próxima, tomam seus trens e no caminho de casa passam no supermercado para comprar o jantar. Boa parte já está em casa por volta das seis horas, seis e meia no máximo. Um ou outro moram mais distante, no litoral ou no campo, deixaram os carros nas estações de trem de suas vilas e de lá vieram até Londres usando o transporte público. Fazem o percurso inverso ao final do dia e, mesmos esses estarão em casa por volta das sete horas da noite. Porém uma parte considerável daqueles operários, empresários, trabalhadores e estudantes dirigem-se para as Casas Publicas - Public Houses, também conhecida pelas três primeiras letras do seu nome em inglês: Pub. Até aí nada demais, nada diferente de outros lugares do mundo onde uma pinguinha no final do dia é comum e parte da sociabilização. A diferença está na quantidade de pessoas que vão para os pubs. No inverno, o frio não cede e a escuridão chega antes das cinco da tarde. As pessoas ficam amontoadas, em pé, dentro dos pequenos e numerosos pubs espalhados por toda a Grande Londres. Do lado de fora, ao lado da porta, sempre um grupo recolhido, tremendo de frio, fumando. Fumar em bares era proibido, e por enquanto ainda era permitido fumar na rua.

Eles ficam ali, em pé, bebendo, as vezes indo lá fora para fumar, bebendo um pouco mais, vez ou outra conversando. Pouco antes das onze horas da noite, em alguns pubs, ainda ecoa um sino, avisando que o bar vai parar de vender, as pessoas compram mais uns dois copões de meio litro de cerveja cada, pois a lei não proíbe o consumo, mas a venda. O bar pára de servir, as luzes se acendem, e mais uns dez minutos e os bêbados clientes são convidados a deixarem o pub. Bêbado em Londres não tem cara, não tem cor, sexo, padrão. Começam a beber aos dezoito anos e terminam, bem, terminam quando terminam. São homens, mulheres, novos, velhos, brancos, morenos, ruivos, carecas. E são muitos mas muitos mesmo.

Beber não é algo que é feito para intermediar uma conversa de bar, para acompanhar uma comidinha ou simplesmente para relaxar. Em terras britânicas bebe-se por beber e a principal e única razão é simples e direta: bebe-se para ficar bêbado. Conversas, casos, comida, amores e qualquer outra coisa são efeitos colaterais que podem ou não ocorrer.

Entre as onze horas e a meia-noite os bêbados britânicos estão soltos na rua. Caminham por entre os becos e ruas, cambaleando, falando alto e sozinho. Muitas vezes eles andam em grupos, outras vezes vão sozinhos mesmo. Essa é a hora crucial, a hora da decisão: ou ir para um clube noturno onde vendem bebida até o dia seguinte ou tomam o último trem pra casa. A caminho da estação ainda conseguem passar nas lojas “off-license” e compram mais algumas cervejas, vinhos, vodcas, uísques. Como não podem mais entrar nos metrôs carregando bebida alcoólica – além de não poder fumar, não é permitido beber nos transportes públicos mais - eles ficam ali na porta da estação, tomando a “saideira”. Os trens que circulam entre as 23h e a meia-noite estão entre os mais cheios, e é proporcionam uma experiência fantástica e surreal. Trens lotados de bêbados que só Deus sabe como chegam em suas casas.

Bebendo tanto assim, uma outra conseqüência surge. O que “entrou tem de sair”. Aqueles milhares de bêbados andando pelas ruas de Londres depois das 23h querem fazer duas coisas: comprar mais cerveja e fazer xixi. As cervejas eles achavam nas lojas “off-license”, o xixi era em qualquer lugar até pouco tempo atrás. Durante as madrugadas, no meio da calçada, surge um mictório. Assim, aberto mesmo, na rua. Como um cilindro com três ou quatro bacias para acolherem os dejetos dos bêbados cidadãos. São como banheiros públicos temporários mas completamente abertos, sem portas ou coisa similar, alguns ficam escondidos no subsolo durante o dia e sobem automaticamente ao anoitecer, outros são colocados pelos agentes de saúde pública e recolhidos ao raiar do dia. Mas em toda rua mais movimentada, durante a noite você vai encontrar um mictório, e, o povo o usa. E muito.

 Alguns andarilhos estão tão bêbados e fazem tantas paradas nos mictórios e lojas “off-license” que perdem o último trem pra casa. Outros o fazem de propósito e vão para os clubes noturnos beberem mais um pouquinho.

Logo que o metrô começa a parar, exatamente à meia-noite entra em cena um outro personagem típico da cidade: o ônibus-noturno. Até parece um ônibus comum: vermelho de dois andares. Porém, além de possuir uma letra “N” na frente do número é um ônibus dirigido por loucos que parecem mais bêbados que os bêbados que ele carrega.

O letreiro luminoso no ponto de ônibus mostrava que o ônibus para a estação de trem chegaria em três minutos. Mais três minutos de frio, pensou ele, bêbado, mas bêbado de sono.

No ponto havia também mais dois homens, visivelmente alcoolizados, estavam de pé e um apoiava-se no outro, pareciam dormir, mas a cada carro ou ônibus que passava eles abriam os olhos, sacudiam a cabeça dizendo que não pegariam aquele e voltavam a dormir.

A rua ficava vazia novamente, e sem mais nem menos, assim como que de repente, aparecia um outro ônibus. Como de costume, os ônibus noturnos passavam voando, desviando-se dos carros e dos bêbados, era preciso manter os olhos bem abertos para não correr o risco de o ônibus não parar ali. Com um minuto de atraso, o ônibus N205 apareceu, ele acenou e o ônibus parou no ponto Q da City Road.

Ele entrou no ônibus, falou para o motorista que deixaria a mala no bagageiro e voltaria para pagar a passagem, rapidamente pegou sua mala, foi até o bagageiro embaixo da escada que levava para o segundo andar do ônibus, deixou-a lá, voltou até a porta e passou o cartão pré-pago pela leitora. Assim que ouviu o “bip” confirmando o pagamento, o motorista fechou as portas do ônibus e partiu em disparada.

Ele deu uma olhada geral pelo ônibus para ver onde se sentaria. O ônibus não estava lotado, mas também de forma alguma estava vazio. Havia alguns lugares para sentar ainda disponíveis. Ele queria sentar-se onde pudesse vigiar a mala, não iria para o segundo andar então. Lá no fundo do ônibus haviam cinco homens com o mesmo jaquetão amarelo fluorescente, sujos de graxa e todos dormindo. Cada um parecia ser de um lugar diferente do mundo, e provavelmente o eram, e cada um carregava uma ferramenta diferente na mão, pelos dizeres na jaqueta eram trabalhadores de manutenção do metrô. Sentar ali estava fora de questão. Em pé, no centro do ônibus, na área reservada para cadeira de rodas, um casal vestindo black-tie, meio tonto e alegre, ainda dançavam alguma música que só eles ouviam, as vezes paravam e se beijavam. Na primeira poltrona, uma mulher bem vestida, cabelos presos, óculos de grau, dormia profundamente, roncava alto com a cabeça encostada na janela.

Ele sentou-se então na poltrona logo atrás da mulher de cabelo preso que roncava. O ônibus deslizava pelas ruas de Islington e Camdem e a cada nova parada mais uma cena acontecia. Numas das primeiras paradas, dois rapazes completamente bêbados subiram no ônibus, um parecia ser o líder e o outro o obedecia.  Com imensa dificuldade de encontrar o cartão pré-pago, resmungavam algo até que o encontraram. O primeiro tocou seu cartão na leitora, pegou o cartão da mão do outro e tocou-o na leitora também. Virou-se para o outro e devolveu-lhe o cartão, dizendo com uma voz completamente distorcida pela bebida: guarde isso com cuidado! O outro guardou o cartão e aparentemente dormiu ali mesmo, em pé. O primeiro puxou o outro até o meio do ônibus, onde a porta de saída fica, pareciam que nadavam contra a correnteza, assim que alcançaram a porta de saída, no primeiro ponto em que o ônibus parou, eles desceram. Da janela ele olhava os dois no ponto de ônibus. Eles ficaram ali parados, olhando para o nada. Provavelmente sem saber onde estavam e para onde iriam.

A porta fechou-se e alguém mais bêbado ainda, desceu pela escada falando algo indecifrável, bateu na porta que acabara de se fechar até que o motorista a abriu novamente, pulou para fora do ônibus e ali mesmo no ponto, vomitou. Ele tudo olhava como se fosse a primeira vez que pegava um ônibus noturno. A próxima meia-hora de viagem até a estação de trem seria cheia de casos assim, de bêbados, trabalhadores e boêmios entrando e saindo do ônibus.

Próxima parada: British Library” – disse uma voz pelo sistema de alto-falantes do ônibus. Outra coisa que ele adorava nos ônibus de Londres era que a maioria deles falava. Cada ponto de ônibus tem um nome, e um letreiro luminoso dentro do ônibus mostra qual o próximo ponto enquanto uma voz feminina anuncia o mesmo ponto.

 

Assim ele pode parar de preocupar-se se estava perto ou longe do ponto em que desceria e prestar mais atenção nos bêbados e trabalhadores que embarcavam e desciam. E assim o fez por mais uns vinte minutos até que ouviu a voz dizendo: “Próxima parada: Estação Paddington.

Paddington durante o dia era uma estação de trem e de metrô muito movimentada. Nela quatro linhas de metrô se encontravam e trens para todo o oeste da Inglaterra saiam dali. Dali também saia o trem expresso para o aeroporto de Heathrow, e também um outro trem local para o mesmo aeroporto.

Mas aquela estação ocupada e apinhada de gente durante o dia, estava vazia, escura, e semi-cerrada às quatro e pouco da madrugada. O ponto de ônibus ficava em frente à entrada principal. Mas esta entrada estava fechada. Ele espiou lá dentro e só escuridão. Deu a volta pela estação até encontrar uma entrada. Era um corredor longo com uma luz ao fundo. Entrou e foi em direção à luz, “Venha para a luz Caroline” – pensou ele, lembrando do filme. Riu de si mesmo e foi até a luz, que na verdade era o meio da estação, onde havia algumas máquinas de venda de tíquetes de trem.

Ele comprou um bilhete de ida-e-volta e foi para a plataforma 5. As luzes da estação estavam apagadas, mas a luz que vinha do trem iluminava suficientemente a plataforma. O trem era longo, comprido, ele andou até o meio do trem e entrou em um vagão vazio, colocou a mala no bagageiro e sentou-se na primeira poltrona que viu. Recostou-se na janela e viu mais uma vez a grandiosidade  da estação adormecida. Eram dezenas de plataformas, e havia um trem parado em cada uma, somente esperando o amanhecer.

Ele ficou ali olhando pela janela, pensando nos destinos daqueles trens, que em algum lugar no oeste outros trens esperavam passageiros para virem para Paddington. O maquinista anunciou a partida e o trem foi lentamente movendo-se por entre os trens parados, vazios e sedentos por passageiros. O Heathrow Connect deixava Paddington exatamente às 4h47.

O trem devia estar vazio, pelo menos naquele vagão só estava ele. A escuridão do lado de fora, o chacoalhar do trem e o som dos trilhos foi lentamente conduzindo-o para um mundo de sonhos e  ele adormeceu.

- O bilhete por favor! – disse alguém.

Ele não acordou, sonhava e dormia como se estivesse em sua cama, em seu quarto, virou para o lado e continuou a dormir.

- Seu bilhete senhor? – Desta vez a voz veio em um tom mais alto, bem mais alto e quase ameaçador.

Ele abriu os olhos e viu aquele homem enorme com um terno apertado e uma máquina de bilhetes à tiracolo. Ele então alcançou a mala, abriu o bolsinho de fora, pegou o bilhete e estendeu o até o bilheteiro que por usa vez, picotou-o e retornou-lhe o papel. Guardou o bilhete no mesmo bolso de onde o havia tirado e tentou dormir novamente. Mas agora ele estava desperto.

Ficou olhando a escuridão lá fora e tentava identificar os subúrbios de Londres por onde passavam.

-Nunca mais tomo um vôo tão cedo! – Disse ele para si mesmo, pela milésima vez.

O trem chegou finalmente a Heathrow Central onde ele desceu.

Heathrow já era um dos maiores aeroportos do mundo, há anos ostentava o título de mais movimentado aeroporto internacional do mundo, mas mesmo assim resolveram que deviam aumentá-lo. Um novo terminal foi construído exclusivamente para a British Airways – o Terminal 5.

Heathrow era servido por serviços de ônibus, metrô e trem. Todos iam até Heathrow Central que fica no meio dos terminas 1, 2 e 3. Uma das linhas de trem ia até o Terminal 4 e a outra até o Terminal 5, claro que o trem que ele tomou ia para o terminal errado, fazendo com que ele tivesse de descer ali e esperar o outro trem para o Terminal 5.

Depois de uns 20 minutos de espera o trem chegou, e o levou até o novo terminal. Ao completar todo o trajeto de ônibus até Paddington, trem até Heathrow Central e mais um trem até o Terminal 5 já eram quase 6h da manhã. “Três horas de viagem, de casa até o aeroporto, e isso porque o Heatrhow é um dos aeroportos mais centrais de Londres”, pensou ele.

O novo terminal era simplesmente belo, todo feito de vidro e estruturas metálicas, com imensas áreas abertas, pé-direito altíssimo. Da plataforma do trem tomou um elevador de vidro até a área de embarque, eram dois níveis apenas, mas a altura era de uns 8 andares. Em menos de cinco minutos havia feito o check-in e passado pela imigração e pela segurança. A área de embarque era também gigante e bela. De cima era possível ver o imenso saguão de embarque com poltronas coloridas e com um desenho completamente louco. Tudo muito futurista e estranhamente vazio.

Caminhou até o portão de embarque e sentou-se ao lado dos outros passageiros. Eram todos normais. Não tinha nenhum com turbante, nenhum com aqueles chapeuzinhos redondos e vermelhos da Turquia. Nenhuma mulher de véu, muito menos de burca. Em poucos minutos começaram os procedimentos de embarque e os passageiros do vôo 9876 da British Airways com destino a Izmir, na Turquia, foram acomodados em seus assentos.

Ele entrou no avião, sentou-se, olhou pela janelinha e viu que o sol já despontava no horizonte, colocou o cinto de segurança. O avião partiu, sobrevoou uma Londres iluminada pelo sol dourado da manhã. Com um sentimento de despedida olhou atentamente para os pontos que via: a Catedral de St Paul, o Parlamento, a Abadia de Westminster, a roda gigante London Eye, a Tower Bridge. O rio Tamisa refletia o brilho do sol. Como quem dissesse adeus, fechou a janelinha, colocou uma venda nos olhos e dormiu. 

Um comentário:

  1. Tudo começou com uma pesquisa sobre a Turquia e aqui estou a ler essa história de narrativa singular. Obrigada por essa jóia. A cada dia lerei um capítulo no almoço do trabalho, e ao final aparecerei novamente com congratulações. Abraços e luz.

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