Quando chegaram ao Anatólia Grill o restaurante estava vazio. Seria a primeira refeição originalmente turca que teriam em solo turco, pois na noite anterior na casa da tia de Ibraim, para surpresa geral, ela havia preparado em homenagem aos dois uma autêntica Vaca Atolada. E realmente havia sido uma das melhores que eles já haviam provado.
O Anatólia era um restaurante simples. Cadeiras dobráveis de ferro, mesas forradas com plástico e, ficava bem em frente ao local onde estavam jogando Rummikub no dia em que o irmão de Ibraim levou uma surra. O nome vinha do grego-bizantino. Anatólia tornou-se um termo comum para determinar a região que ficava ao sul do Mar Negro, ao leste do Mar Egeu, ao norte do Mar Mediterrâneo, e que tinha o Cáucaso no nordeste e a Mesopotâmia no sudeste, além do planalto iraniano ao leste. Uma região muito conhecida dos livros de história e dos livros sagrados. E, eles estavam exatamente ali. No meio da Anatólia sentados nas cadeiras frias de ferro, com as mãos em toalhas de plástico naquele pequeno e simples restaurante que não lembrava em nada a magnificência do nome e da região.
Como que em procissão, o grupo de turistas chegou e junto deles Meryem. Ela vinha conversando alto e gesticulando como se italiana fosse. Mas as aparências terminavam aí. Ela vestia uma roupa mais discreta que as demais do grupo. Calças pretas bem folgadas nas pernas, uma camisa branca de linho, um casaquinho preto e um véu colorido e longo que cobria parte do cabelo, displicentemente caído sobre os ombros e enrolando um pouco sobre o corpo, deixando aparecer muito mais cabelo do que qualquer outra mulher turca. Seus gestos eram suaves, sensuais e lentos. Sua voz era alta, mas apaziguadora. Abriu um sorriso quando viu os dois irmãos no restaurante.
Sentaram em uma longa mesa que estava preparada especialmente para o grupo. Pão e garrafas de água mineral já estavam sobre a mesa. Um turco sorridente e falante chegou com os menus, falou um “boa noite” em português para o grupo. Pediu desculpas e disse que não sabia nada além daquele cumprimento em português. De vez em quando respondia a uma ou outra pergunta do grupo em inglês, mesclando umas palavras de espanhol e italiano.
O menu parecia enorme, mas era grande por ter fotos de todos os pratos e cada página era repetida 6 vezes em línguas diferentes. Turco, inglês, francês, espanhol, árabe, grego e italiano. Mas a variedade de comida não era tão grande. O irmão de Ibraim pediu um kebab e voltou a conversar com o grupo que ansiosamente queria saber detalhes sobre a surra que levara no dia anterior. Aquele seria o assunto de pelo menos uma semana na cidade.
Sentados à mesma mesa, mas distantes, em outro mundo, estavam Meryem e Ibraim. Conversavam a princípio em inglês e aos poucos foram mudando para o turco, de forma que ninguém do grupo entendia o que falavam. Mas não era necessário. Ibraim contava algo e Meryem, com seus olhos cor de mel e amendoados, prestava atenção em cada palavra, em cada gesto. De vez em quando ria, outras vezes fechava o rosto com olhar triste. Meryem também falava bastante e Ibraim sequer virava os olhos para qualquer direção. Parecia absorver cada palavra que saia da boca de Meryem. E, naquela noite o mundo parecia existir somente para os dois. Só interromperam a conversa para responder ao garçom que prato queriam e para receberem o prato escolhido. A comida não era das melhores, o tempo estava fechando, o restaurante era feio, simples e nem mesmo muito limpo. Mas para Ibraim e Meryem tudo estava perfeito. Conversaram sem parar e absortos a tudo e a todos durante todo o jantar.
- Café? – Interrompeu o garçom. Que já havia recolhido quase toda a louça usada da mesa. E entregava a nota para Meryem que ficara encarregada de pagar aquela refeição.
Meryem olhou para Ibraim que consentiu, e perguntou se mais alguém na mesa queria café turco. Além de Ibraim, o irmão e um outro senhor ninguém mais queria café aquela hora da noite.
- Ryan, três cafés por favor. – Disse Meryem ao garçom.
O café chegou em três xícaras um pouco mais altas que as xícaras de cafezinho, mas da mesma largura. Possuía um cheiro forte e era visivelmente cremoso. Meryem explicou antes que começassem a beber:
- O café turco não é filtrado. Espere um pouco para beber, para que a borra do café assente no fundo da xícara. Beba aos poucos até que comece a sentir que está bebendo pó.
Assim fizeram. O senhor que havia pedido o café não gostou desde a primeira bicada, deixando o café na mesa, disse algo sobre estarem esperando por ele no hotel e saiu. Ibraim e o irmão, aguardaram um pouco mais e beberam o café. Não era ruim. Na verdade era a melhor coisa que tiveram naquele restaurante. Pararam quando começaram a beber pó.
Meryem falou algo em turco ao garçom simpático que havia servido o grupo e este veio até os dois e disse em inglês.
- Quer que eu leia?
Os dois ficaram surpresos e não entenderam o que ele queria ler. O garçom repetiu:
- Quer que eu leia a xícara?
O irmão de Ibraim virou-se para ele e disse que sim, e virando-se para o irmão.
- Ele vai ler a borra do café. Ler nosso futuro, nossa sorte! Não é legal?
- Que bobagem. Diga a ele que não precisa ler a minha. – Disse Ibraim.
- Por que? Tá com medo do que pode ouvir?
- Porque não acredito nisso, só isso. Não tenho medo. Vai pode ler....
Meryem rindo da discussão, disse aos irmãos:
- Esperem que o Ryan leia e deixem para acreditarem ou não depois. Ele é de uma família tradicionalíssima de leitores de café, e, aqui na Turquia isso é considerado um dom. Não precisam acreditar, apenas aproveitem que estão aqui e vivam a cultura local.
O garçom amável, simpático e falante transformou-se em um homem sério e introspecto de um segundo pra outro. Parecia até mesmo ser outra pessoa. Concentrou-se, fechou os olhos por alguns segundos. Abrindo-os, fitava as xícaras. Olhando para os irmãos esperava algum movimento deles.
- Dá-me aquela xícara de café que o outro não tomou, disse Meryem.
Jogou o café que estava dentro em um outro copo e disse:
- Repitam o que eu faço. Retirem o pires debaixo e coloquem-no sobre a xícara, como se fosse uma tampa.
Os dois foram imitando Meryem que fazia os movimentos enquanto falava pausadamente. Segurando o pires com uma mão, firmou a xícara com a outra e virou a xícara de forma que ficasse com a boca para baixo.
- Agora coloquem novamente na mesa!
Uma vez que estava na mesa, Ryan – o garçom, chegou perto do irmão de Ibraim e olhou o bem nos olhos. O irmão não se conteve e começou a rir. Ao ver que Ryan não ria, ficou sem graça e pediu desculpas. Pendido para que ele continuasse. Sem tirar os olhos dos olhos Ryan pegou a xícara com uma mão para virá-la, por uns instantes o pires grudou na xícara e veio junto da mesma. Quando estava já há uns 10 centímetros da mesa, o pires desgrudou-se e caiu sobre a mesa.
- Muito bem! Bom começo, disse Ryan. Isso significa sorte e fortuna.
Ryan olhou então profundamente para o interior da xícara e disse:
- O fundo vazio e limpo da xícara normalmente revelam que você está em sintonia com sua “casa”, com você mesmo, com seu coração. Porém o seu está limpo demais e com estes desenhos ao lado só pode significar uma coisa. Você está com o corpo fechado. Tem medo de algo acontecer no campo afetivo e levá-lo para longe dos seus planos. Tem medo de mudar muito sua vida e assim não permite que o amor chegue perto de você.
- Viu? Coração de pedra! – Disse Ibraim, rindo.
- Porém estas linhas retas e paralelas indicam que você está aberto para a prosperidade e que muita coisa boa chegará. Inclusive parece que um romance surgirá em um futuro próximo, veja está próximo da asa da xícara.
- Profissionalmente você está no caminho certo, embora uma nova virada e mudança pareça surgir em breve, e desta vez será uma mudança muito mais radical. Você tem uma dificuldade de parar. É por isso que o fundo da xícara tá limpo também. Você não consegue fixar-se, e isso não é uma coisa necessariamente ruim. Pelo contrário, se você ficar preso em um lugar, em alguém sofrerá muito. Veja, sua alma é como uma águia que precisa voar. E isso não vai mudar.
Pegando a xícara da mão de Ryan, ele deu uma olhada e girava a xícara e a cabeça tentando ver algo ali além daquelas manchas.
- Isso parece ultra-som de mulher grávida. Não dá pra ver nada. E se você fala que isso é um coração eu acredito. Se você falasse que era uma girafa eu acreditaria também.
Ryan riu alto e disse:
- Não é necessariamente o que está desenhado, mas o que eu vejo no desenho. As vezes vejo coisas outras não. E começou a recolher as louças sujas em uma bandeja, limpando a mesa. Ibraim então perguntou:
- E a minha? Não vai ler?
Sem parar de limpar a mesa, mantendo-se indiferente, talvez por Ibraim ter desdenhado a leitura, Ryan disse à Ibraim:
- Você quer que eu leia sua sorte?
- Sim. Claro. Gostei da brincadeira. Disse Ibraim tentando ser mais sociável.
- Tudo bem. Mas pra mim isso não é brincadeira senhor. – Disse Ryan.
Ibraim ficou sem graça, com receio de ter ofendido o garçom e pediu desculpas.
- Desculpe-me. Eu gostaria muito que você lesse.
Concentrando-se novamente, chegou em frente a Ibraim e olhou-o nos olhos. Pegou a xícara de Ibraim e, de pé em frente a todos começou a interpretar os borrões que via na xícara. A xícara de Ibraim também veio grudada com o pires, mas esse só caiu quando Ryan virou a xícara, à meio metro da mesa. Caindo na mesa, o pires quebrou.
Ryan fechou os olhos e fez uma expressão de dor. Abriu os olhos arregalados e ainda com uma expressão de espanto, porém em dois segundos voltou a aparentar calma e tranqüilidade.
- Não se preocupe com o pires. Sua vida é cheia de rupturas e pedaços mal colados. Sua vida pessoal e familiar é bastante, como posso dizer, diferente, ao mesmo tempo que é intensa é muito inconstante, você vive intensamente mas mantém-se distante como se não fosse parte da mesma. Você faz parte do retrato, mas está mais para o fotógrafo. Você se descola dos outros, quebra-se e não integra-se.
- Vixi!! Pegou em cheio, Bro! – Disse o irmão, em português e rindo.
- Deixa ele continuar ...
-Financeiramente e profissionalmente sua vida foi e continuará brilhante. Porém o coração parece viver sempre com medo. Veja, há várias tentativas de formar corações, mas nenhum realmente está formado. Existe uma perda, um vazio no passado que você tenta preencher e nunca será preenchido. E junto disso tem uma raiva que claramente é o que o afasta de estar mais próximo dos que ama, com medo de perder quem ama, seu coração escolhe não amar. Com medo de morrer, seu coração prefere não viver.
Ryan voltou a olhar a xícara. Os olhos de Ibraim estavam vidrados no que Ryan dizia.
- Mas veja, perto da asa, hoje, você aparece mais seguro, os traços mais firmes e algo parece estar mudando. Existe uma mudança a caminho, mas não...
Sem terminar a frase Ryan olhou para a xícara novamente. Arregalando os olhos não piscou por um bom tempo. Olhou novamente para a xícara. Apertava-a como se fosse espremer algo dela. Revirou-a e colocando-a de volta sobre a mesa, recolhendo os pedaços quebrados do pires, tentou disfarçar o incômodo que sentia com o que havia lido disse, com um sorriso sem graça no rosto.
Mas provavelmente você tem razão – essas coisas são bobagens. Aproveitem a viagem. Boa noite!
Ibraim não quis tocar no assunto durante a caminhada para o hotel onde Meryem estava hospedada. O irmão disse aos dois que iria na frente, pois queria fazer uns telefonemas, foi direto para o hotel e deixou os dois sozinhos.
- O que foi aquilo Meryem? Por que Ryan simplesmente parou de ler de repente? O que ele viu? – disse Ibraim, preocupado com o que não ouviu.
-Não se preocupe Ibraim. Esses leitores são temperamentais. Provavelmente ele ficou chateado porque você falou que era besteira e fez aquilo só pra você ficar assim mesmo.
- Será?
- Eu acho que sim, mas amanhã tenho que ir até lá para acertar o jantar, e vou tentar descobrir dele e lhe falo, tá bom? Não se preocupe.
Ibraim olhou para o relógio, olhou para Meryem e com um olhar de tristeza disse.
- Já está tarde, e amanha no final do dia, eu e meu irmão vamos para Istambul. Eu gostaria de ter tido mais tempo para conhecê-la melhor.
- Istambul? Repetiu Meryem, com uma alegria incontrolável na voz. Vocês vão ficar quantos dias lá?
- Três dias, quatro noites. Você acha que é o suficiente pra conhecer a cidade? Na verdade eu vou ficar mais uns dias para uma conferência.
- Acho que sim Ibraim. Mas, se você quiser se encontrar lá, eu vou estar em Istambul depois de amanhã e fico lá por uma semana. Posso mostrar pra vocês algumas coisas da cidade. Eu morei em Istambul muitos anos.
- Seria ótimo. Espero que não atrapalhe os seus planos.
- Não, de forma alguma. Vou para encontrar com parentes e como estamos no Ramadã, ninguém faz nada durante o dia. A noite fica mais difícil, mas de dia estarei livre. Esse é meu celular. Liga pra mim quando vocês chegarem em Istambul.
Sem pensar e mesmo sem sequer imaginar conseqüências Ibraim deu um beijo em Meryem, que ficou envergonhada. Colocando o véu sobre o rosto, disse enquanto descia as escadas até o hotel:
- Boa noite Ibraim Aguardo sua ligação de Istambul.
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