quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Capítulo VI - Ryan - O Café e Seus Significados

Ibraim e o irmão acordaram cedo. Mais uma vez reclamando dos tambores do Ramadã.

-Turquinho, não vejo a hora desse Ramadã acabar para eu dormir direito. Disse o irmão à Ibraim.

Concordando com a cabeça, Ibraim terminou de escrever alguma coisa em um pedaço de papel, colocou o papel no bolso disse:

- Vamos descer que meu primo já deve estar lá com os documentos.

- Você vai mesmo vender sua parte pra eles? Será que não consegue um preço melhor se vender no mercado?

 Eu até acho que consigo um preço melhor, mas teria de esperar um bom tempo, e também eu prefiro que fique na família. Eu não preciso de mais dinheiro e pra eles esse hotel é uma coisa importante. Eu também só tenho um terço disso mesmo.

Na recepção do hotel, Mohamed e outros dois parentes já estavam esperando. Na verdade todos que trabalhavam no hotel eram de alguma forma parente ou casado com algum parente de Ibraim. Abraçaram-se, conversaram e logo chegaram no assunto da borra de café. Diziam para Ibraim não se preocupar com o “leitor” de café, que ele era um charlatão e coisa do gênero.

Ibraim tentou em vão explicar que não se importava – e realmente estava muito tranqüilo - só ficou um pouco irritado por saber que todos na cidade já sabiam que o garçom havia parado a leitura no meio e isso havia criado um zum-zum-zum. Mas a tranqüilidade de Ibraim não convencia os primos, que visivelmente estavam chateados e repetiam para que ele não se preocupasse.

Mohamed, muito sem graça, mas sem poder se conter ainda falou ao primo:

- Ibraim, eu sei que vocês ocidentais não entendem, mas aqui essas coisas são muito sérias. Mas aproveite seu último dia aqui na Ásia Menor. Inclusive, eu já pedi para um outro primo nosso lhe buscar no aeroporto de Istambul, e o hotel também já está reservado e pago.

- Não precisava preocupar-se Mohamed. Eu já tinha feito reservas em um hotel.  – disse Ibraim, assinando os documentos e entregando a Mohamed.

- Mas eu já cancelei e fiz as reservas neste outro que fica em um local melhor e também é da família – e vocês não vão pagar nada. Eu passo aqui às 16h pra buscá-los para levá-los ao aeroporto. Aqui está o pagamento pela sua parte. 

Mohamed abriu uma maleta cheia de euros e turcas liras. Ibraim e o irmão arregalaram os olhos, e o irmão exclamou:

- Você não vai carregar isso até o Brasil Ibraim! Vai?

Ibraim sorriu, fechou a mala, entregou-a a Mohamed:

- Vamos fazer o seguinte. Você transfere para minha conta de Londres. Aqui está o número – e, entregando um papelzinho para Mohamed tentou encerrar o assunto. Mohamed ainda tentou convencer o primo a ficar com o dinheiro, dizendo que esse era o costume ali. Ibraim não cedeu. Mohamed só foi convencido quando Ibraim disse que se fosse obrigado a ser pago com dinheiro vivo iria cancelar o negócio.

- Algo mais que eu possa fazer por vocês até a hora de partir? – Perguntou Mohamed.

- Sim. Disse Ibraim sem nem pensar. Eu queria enviar umas flores pra esse endereço aqui ...  – entregando um pequeno papel para Mohamed.

-  Tudo bem primo. As flores serão entregues. Não vai junto nenhum cartão?

O recepcionista do hotel entregou-lhe na mesma hora um pedaço de papel e uma caneta.

- Boa idéia – disse Ibraim pegando o papel.  Escreveu algo e entregou-o para Mohamed.

- Mohamed, tem como você pedir um táxi pra daqui a pouco? Temos ainda que ir a dois lugares antes de irmos embora.

- Claro primo. Em dez minutos o táxi está aqui.

- Nós ainda vamos tomar café, em meia hora tá bom.

- Ah... Desculpa, estou tão acostumado com o Ramadã que nem lembrei-me. Vou indo e a gente se fala no final do dia quando for levá-los ao aeroporto. Não se preocupe com as flores. Serão entregues. E em meia hora o táxi estará aqui.

- Obrigado. Até de tardinha então. – disse Ibraim apertando a mão dos primos e voltando-se para o irmão, abraçando-o e puxando-o para o restaurante do hotel.

- Veja! Eles tem damascos! – Ibraim exclamou, fazendo o irmão sorrir, pois não via Ibraim com tanto bom humor desde quando eles foram aos parques da Disney, isso há pelo menos 25 anos.

Alguns quarteirões dali, Meryem terminava de embarcar os turistas no ônibus e despedia-se deles. Trocando emails e endereços. Sabia que no máximo um ou dois escreveriam algo e que em dois meses sequer lembrariam dela. Mas mesmo assim ela dava o email e endereço para quem pedisse.

O ônibus partiu em direção à Capadócia onde os turistas fariam uma viagem de balão de ar, Meryem ainda acenou, mas assim que ele desapareceu na estrada, pegou seu véu e bolsa e foi em direção ao Anatólia Grill para conversar com Ryan.

O restaurante ainda estava fechado, cadeiras em cima das mesas, janelas e portas fechadas, provavelmente só abriria para o jantar, afinal era Ramadã. Ela bateu à porta com insistência e, depois de alguns minutos viu Ryan vindo em direção à porta.

- Bom dia princesa! Um pouco cedo para o jantar não? – disse Ryan enquanto abria a porta.

Ela entrou e fechou a porta atrás de si, enquanto Ryan tirava duas cadeiras de cima da mesa próxima ao caixa, e oferecendo o assento à Meryem perguntou:

- Quer um chá?

Meryem olhou para Ryan com um sorriso, pois era Ramadã e não deviam beber nem comer nada até o pôr-do-sol. Ele olhou de volta com um olhar de cumplicidade e o mesmo sorriso maroto. Eram amigos fazia muitos anos e sabiam o quanto não suportavam algumas imposições da fé.

Ryan despejou chá nas xícaras, colocou uma em frente à Meryem e a outra em frente à outra cadeira vazia, onde sentou-se.

Bebericando o chá, Meryem retirou um envelope da bolsa e entregou-o a Ryan.

- Aqui está o pagamento do jantar de ontem. Todos gostaram muito.

Ele tomou um pouco do chá, pegou o envelope e pôs ao lado. Meryem bebericou um pouco mais e falou:

- E você vai me falar agora ou vou ter que esperar o dia todo?

Ryan, bebeu mais um gole de chá. Pousou a xícara no pires e disse.

- Falar o que minha cara? Não tenho nada pra falar.

Enquanto colocava a xícara de chá de volta à mesa Meryem olhou para Ryen, e como um olhar de quem sabia que ele sabia do que ela falava disse:

- Sobre aquela leitura de borra de café interrompida ontem...

Olhando para o envelope que havia colocado ao lado da mesa Ryen continuou:

- Que isso Meryem? Foi tudo encenação. Você sabe disso. Quantas vezes já fiz isso...

Colocando as duas mãos sobre a mesa, inclinando-se um pouco mais em direção à Ryan, Meryem disse em voz firme:

- Ryan, eu lhe conheço há muitos anos. Já perdi a conta do número de vezes em que vi você lendo a sorte na borra de café. Eu sei quando você está criando uma história para fazer o turista feliz, sei quando você está lendo por ler e sei muito bem quando você está realmente lendo.  Porém ontem você perdeu completamente o rumo. Você ficou desconcertado,  desesperado e totalmente chocado com o que viu. Eu vi nos seus olhos a dor e angústia. Você parecia mergulhar naquela xícara e não gostar do que via. Eu fingi que não sabia o que acontecia. Mas sei que você viu algo. Você tem de me contar. O que viu? O Ibraim corre algum perigo?

Ryan respirava fundo e balançava a cabeça, enquanto ouvia Meryem insistindo que contasse o que ele viu. Finalmente ele parou de beber e em voz calma e tranqüila começou:

-Meryem, você sabe que a leitura e adivinhação são coisas pessoais e carregadas de interpretações. Você sabe que o futuro que é visto ali é a apenas uma indicação e tendência baseada no que aconteceu até hoje e nas atitudes da pessoa perante a vida. Que tudo é passado pelos dedos enquanto toma o café turco.

- Eu sei de tudo isso Ryan. É por isso que quero saber se ele corre algum risco, pois assim podemos tentar evitar algo pior.

- Não cabe a mim ou a você interferir no destino desse forasteiro Meryem.

-Ele não é um forasteiro. É turco como nós, ou quase. Talvez mais sortudo por ter tido a oportunidade de viver em outro mundo mais tolerante e mais aberto. Mas é filho de mãe turca, tem sangue turco e temos de ajudá-lo se for preciso.

- Vejo que tem algo a mais aí do que uma simples solidariedade pelo patrício. – insinuou Ryan.

- Talvez tenha Ryan. E isso apenas aumenta a vontade em querer ajudar.

Os dois ficaram calados um bom tempo. Terminaram o chá. Ryan foi até a cozinha e trouxe mais chá. Enquanto servia falou:

- Tudo bem eu falo. Mas você tem que prometer que não irá procurá-lo. Na verdade quero que você simplesmente esqueça que ele existe.

- Fale logo. Eu não prometo nada.

Ryan sentou-se novamente e com os olhos fechados começou a contar o que vira:

- Quando o pires caiu e quebrou meus olhos encheram-se de lágrimas. Eu nunca havia sentido tamanha dor e tamanho querer em minha vida. Ao fechar os olhos eu vi duas almas unidas que iam descolando-se e rasgando-se. Dos trapos que restavam saia sangue e do sangue surgia essa nova alma que era nitidamente a do rapaz. Mãos tentavam cerzir aquela alma junto com novas almas que surgiam, mas as linhas sempre rompiam-se, ou a própria alma rasgava-se em dor e sangue.

Meryem olhava atentamente e não dizia uma palavra. Ryan abriu os olhos e virando-se para ela disse:

- Ele conseguiu através dos anos controlar essa solidão, mesmo dentro de casa. O fundo da xícara completamente vazio deixava claro que ele não quer estar ligado a ninguém. Uma alma com medo de sofrer mais.

Sem parar um segundo para respirar Ryan continuou:

- E a raiva? Aquele homem traz dentro de si uma raiva imensa. Jamais vi algo assim. A xícara pesava. Eu tive de segurá-la com força e concentrar-me para não deixá-la cair. Uma raiva de tudo e de todos que, assim como toda e qualquer raiva, torna-se incontrolável e inconseqüente.  E, essa raiva só traz destruição e solidão. Tudo o que ele começa a amar, tudo o que ele busca, acaba quebrando-se. E aí minha cara amiga vem a parte que eu mais temi.

- O que? Tem mais? – Disse Meryem quase chorando.

- Eu vi que ele mesmo com tudo isso tenta superar tudo e todos. Profissionalmente não deve existir melhor que ele. Mas quando o assunto é relação pessoal ele é um fracasso.

- Mas ele é tão simpático, tão envolvente e carinhoso... Como pode ser um fracasso?

- O fracasso a que me refiro é no sentido de manter uma relação duradoura sem deixar a raiva e o medo tomarem conta. E quando esses dois sentimentos chegam ele se desespera e abandona tudo, para não permitir que um sofrimento maior aconteça.

- E o que você teme? Não entendi.

- Eu vi na borra do café, que ele está apaixonado pela primeira vez. E está disposto a correr o risco que for por esse novo amor. Eu vi que ele vai enfrentar o medo e a raiva para estar ao lado dessa pessoa.

- Isso é bom. Não é?

- Quando eu olhei bem dentro do desenho formado eu vi que mais uma vez a alma dele era rasgada e vertia sangue – que mesmo com a boa intenção e vontade ele não teve forças para ir contra o destino. Ele sofria por ver a pessoa amada sofrer e, ao ver ela morta, ele também morria.

Contendo-se para não chorar, Ryan continuou.

- E agora minha amiga, eis a razão porque eu peço, encarecidamente que você nunca mais veja esse homem. A pessoa pela qual ele sofria e morria era você.

Meryem respirou fundo. Limpou os olhos cheios d’água com um guardanapo e falou:

- Ryan, você me conhece melhor do que eu mesma. Você sabe que já mudei meu destino mais de uma vez e que não vai ser desta vez que vou permitir que definam o que vou fazer ou não.

- Meryem, você tem controle sobre o seu destino, não sobre o dele. E, até o momento, você estava sempre sã e em total consciência quando tomou decisões que mudaram seu destino. Se você permitir ele vai aproximar-se, envolver-se e apaixonados não usam a razão para decidir nada, o destino dele provavelmente não será com você por perto. O sofrimento e a morte estão rondando aquele homem como um leão ronda sua presa. E vai levar a ele e quem estiver ao lado dele.

Meryem ficou calada. Sabia que Ryan não estava inventando nada. Mas sabia também que tudo aquilo era apenas o que ele vira, e não necessariamente o que devia acontecer. Pegou sua bolsa, seu véu e sem dizer uma palavra saiu.

Caminhou devagar e parando a cada dois passos para enxugar as lágrimas. Nunca havia sentido algo por alguém assim. Ela achava que amor e romance era para fracos e tolos que viviam em outro mundo, não para uma mulher forte e independente como ela. Mas não conseguia parar de pensar na figura de Ibraim sofrendo e morrendo. E doía mais saber que ela era a causa de tal sofrimento e dor. Quando finalmente chegou ao hotel, o recepcionista entregou-lhe as chaves do apartamento.

Subiu as escadas como quem carregasse o peso do mundo sobre as costas subindo cada degrau como se tivessem um metro de altura. Abriu a porta devagar e viu na mesinha um buquê enorme de flores. Um pequeno cartão escrito em inglês apenas dizia.

“A Turquia era um lugar distante e triste para mim, hoje enche meu coração de alegria e esperança. I.R.”

Meryem jogou-se na cama e chorou.

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