sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Capítulo VIII - Filhos - Razões

O irmão de Ibraim tomou um café expresso, no Café Turco que havia na entrada, perto de onde os táxis estacionavam. Pagou pelo café e comprou uma barra de chocolate. Ainda conversava alegremente com o garçom sobre futebol quando ouviu o barulho do vento lá fora. Dirigiu-se para a porta do café e assistiu a revoada de tiras de pano que subiam aos céus. Andou para o meio do redemoinho e ficou maravilhado com a beleza que o céu azul, as tiras brancas e o verde do local, juntos proporcionavam. Assim como começou, o vento parou de repente. Uma das tiras caiu bem em seu ombro. Estava escrito em turco ou alguma língua desconhecida meio borrado e apagado. Guardou o pedaço de pano no bolso pensando em verificar depois. Continuou andando em direção à casa.

Se Ibraim tinha dificuldades em crer e em aceitar os que criam, seu irmão não. Não que fosse religioso ou que cresse em algo. Tinha alguns hábitos que poderiam ser interpretados como fé, mas para ele era apenas rotina, rezava o “Santo Anjo” aos sair de casa e, antes de dormir rezava a Ave-Maria que Ibraim lhe ensinara quando ainda eram crianças.  Simplesmente ele aceitava que as pessoas podiam crer em que quisessem e não julgava ninguém por isso, pelo contrário, ele achava bonito que as pessoas se preocupassem. Ele era um homem feliz. Até então a única coisa que o preocupava era Ibraim, amava muito o irmão e não suportava vê-lo sempre triste e sem vida. Mas ali, na terra de sua mãe, parecia que Ibraim havia finalmente encontrado a si mesmo. Ibraim mostrava sentimentos pela primeira vez. Ibraim chorava, ria, e até permitia-se amar e ser amado. Mesmo com toda a emoção e as lembranças tristes que a Turquia podia trazer o irmão estava feliz ao ver Ibraim vivendo intensamente pela primeira vez.

A casa era realmente pequena. Um cômodo que devia ter sido quarto e sala ao mesmo tempo e um outro cômodo minúsculo que parecia ser a cozinha. Era feita de pedras e o sol entrava por uma única janela lateral. Um pequeno aparador na parede servia como altar, duas velas acesas e um ícone bizantino com a imagem da Virgem e do Menino. Espalhados pela sala quatro banquinhos e dois genuflexórios. Ibraim estava sentado em um dos bancos e não havia notado a chegada do irmão, que sentou em um banco do outro lado.

Ibraim olhava para o ícone tentando ver algo além da tinta e da madeira. Fechava os olhos para ver se a escuridão e o vazio o ajudavam a ver. Nada.  Abriu os olhos e sem desviar os olhos do ícone começou a rezar a única oração que sabia. Levantou-se e deu uma última olhada para o ícone, colocou a mão no bolso da jaqueta, segurando firmemente as cartas da mãe e pensou: “eu queria querer crer mãe, mas acho que isso não é questão de vontade”. Saiu da sala, passou pela pequena cozinha e saiu pela lateral da casa. Ficou ali parado esperando o irmão.

Em poucos minutos o irmão saiu chegou perto de Ibraim e sem esperar resposta ou comentário disse apenas:

- E aí Turquinho?

Ibraim sorriu para o irmão de uma forma carinhosa. Colocou o braço sobre os ombros e o puxou para o caminho dizendo pausadamente:

- E aí? Eu estava pensando aqui, tentando entender minha mãe, sua fé e confesso – não vá contar a ninguém - que até pensei que algo mágico pudesse acontecer.

O irmão apenas sorriu. Ibraim continuou:

- Sei lá. Pensei que fosse sair daqui entendendo quem sou, de onde vim, porquê estou aqui e todas essas perguntas que fazemos a todo momento.  Só que cada um tem seu caminho, sua vida e seu destino. Querer que o que fez sentido para a vida de minha mãe faça o mesmo sentido para a minha vida ou para de qualquer outro é loucura. Eu não creio em nada disso que está aqui, mas olho com outros olhos hoje. Vejo que para muitos isso faz sentido, assim como fez para minha mãe.

- Sabe Turquinho, eu tenho uma teoria: crer é um sentimento, uma disposição, um ato, sei lá o que. Só sei que é algo destinado apenas aos fortes. Temos simplesmente que aceitar que nós somos fracos e não entendemos o que eles entendem, não vemos o que eles vêem.

- É. Acho que você tem razão.

Desceram pelo outro caminho, viram que logo abaixo da casa, no muro que se formava, havia três fontes de água. As pessoas bebiam da água e colocavam em pequenos frascos, enchendo o mesmo frasco com água das três fontes.

Ibraim comprou dois frascos vazios e deu um ao irmão. Era a única coisa que faltava fazer para atender o pedido de sua mãe. Levar daquela água. Entraram na fila, ou no que achavam que devia ser uma fila, pois tal conceito não existia na Turquia. Beberam da água, encheram os frascos e continuaram o caminho, passando pelo muro cheio de paninhos e chegando finalmente ao café.

Sentaram-se do lado de fora, em uma mesa da qual podiam ver a casa, as fontes, o muro com as tiras de pano. Ficaram ali algum tempo em silêncio. Ibraim finalmente quebrou o silêncio:

-É estranho. Pensando bem, eu nunca senti-me assim.

-Assim como? – Perguntou o irmão.

-Sabe, sempre tive esse vazio, esse buraco que a ausência de minha mãe me deixou. E isso é o que dirigiu minha vida até hoje. Estudei medicina, virei oncologista para tentar de alguma forma evitar que isso acontecesse com outros. Não é fácil você saber que vive porque alguém morreu pra lhe dar a vida. Sempre senti-me culpado.

Não dando espaço para que o irmão interviesse, Ibraim continuou:

-Hoje, pela primeira vez, sinto que minha mãe está comigo de alguma forma que desconheço, que não me deixou, que não a matei, e que seja lá como for, este espaço vazio que ela deixou está preenchido.

O irmão apenas sorriu. Já havia notado que Ibraim mudara nos últimos dias, e agora, o próprio Ibraim caía em si.

Um outro vento forte bateu de repente, mas desta vez nenhuma tirinha de pano se desgarrou do muro e voou. No pátio lá embaixo uma criança brincava no redemoinho que se formava. Um pequeno lenço azul claro voava, subia e descia, fazendo malabarismos. A criança tentava pegá-lo e ele voava novamente. Ibraim então falou:

- Você viu o vendaval que deu agora há pouco? Várias daquelas tirinhas se desgrudaram e voaram. Essa daqui caiu ao meu lado.

Ibraim tirou a tira do pano com a inscrição no bolso. O irmão sorriu novamente, olhou com uma cara de ternura para Ibraim e disse:

-E você ainda esperava algo mais mágico?

Ibraim nada falou. Sabia que de alguma forma, crendo ou não, tinha vivido algo diferente e fora do seu conhecimento.

O irmão como quem não quisesse ficar pra trás, falou:

Eu também ganhei uma. Essa caiu no meu ombro. Mas não consigo entender nada. Deve ser turco, grego, árabe...

O irmão tirou seu pedacinho de pano do bolso e mostrou à Ibraim que pegou com cuidado e tentava ler.

-Não dá pra entender muita coisa, mas parece uma passagem ou da Bíblia ou do Alcorão. Veja aqui no final, em grego: Ioannes XV - II.

-Deve estar aí desde 15 de fevereiro de algum ano... Fica com ela e tenta descobrir depois. Mas é minha heim? – Concluiu o irmão dando um tapinha nos ombros de Ibraim.

 

 

 

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