quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Capítulo VII - Os Templos e a Casa - Meryen Ana Evi

Ibraim passou o café da manhã falando e falando. Ainda visitariam alguns pontos turísticos antes de finalmente embarcarem para Istambul.

Ele contava com muita ênfase da maravilha que deveria ter sido o Templo de Artêmis. Era datado de pelo menos 550 anos antes de Cristo. E foi construído em um sítio onde anteriormente era algum outro templo ainda da Idade do Bronze. E repetiu algo e devagar para o irmão ouvir:

- Idade do Bronze! Você pode imaginar?

Enquanto comia tâmaras e damascos Ibraim ia entusiasmadamente explicando que Artêmis era irmã gêmea de Apolo, era representada como uma caçadora, era deusa das florestas e montanhas, da fertilidade, do parto, da virgindade e suplantou até Titã Selene como deusa da lua.

“Eu nem sabia que havia Titã mulher” – pensou o irmão, mas não disse nada. Não queria interromper a alegria do irmão. Apenas balançou a cabeça e arregalou os olhos em sinal de que estava escutando e continuou tomando café.

Ibraim pausando rapidamente para engolir uma das tâmaras, continuou:

- O templo era considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo e havia sido destruído em 356 antes de Cristo por um tal de Erostrato– que buscava a fama a qualquer custo.  Valério Máximo dizia que “Se um homem destruísse o templo the Artêmis em Éfeso, pela destruição do mais belo dos monumentos, seu nome seria conhecido no mundo inteiro”

- Ei, em inglês eles usam a expressão “Herostratus Fame” pra referirem-se a pessoas que buscam a fama a qualquer preço.  – disse o irmão desta vez não contendo-se e interrompendo o irmão.

- E em muitas outras línguas também. Mas continuando. Os efésios condenaram Erostrato à tortura e à morte e proibiram que o nome Erostrato fosse escrito e falado. Mas é claro que a proibição não foi eficaz e um historiador grego chamado Estrabão escreveu a história e por isso sabemos hoje seu nome.

Ibraim comeu mais um pedaço do damasco e continuou a história:

- O mais interessante é que Alexandre - o Grande - nasceu naquela mesma noite em que o templo foi destruído. Plutarco – outro historiador da época – escreveu que Artêmis estava tão ocupada com o nascimento de Alexandre – lembra que ela era deusa protetora dos partos também - que não pode socorrer o seu próprio templo.  Sabendo disso, anos mais tarde, Alexandre ofereceu-se para reconstruir o templo, mas os efésios recusaram. O templo só foi novamente reconstruído em 323 antes de Cristo.  Depois destruído novamente pelos Godos. Os efésios construíram mais uma vez o templo e segundo relato do livro apócrifo Atos de João, são João Evangelista rezou publicamente ali, exorcizando o local quando “de repente o altar de Artêmis foi repartido em vários pedaços... e metade do templo ruiu” convertendo instantaneamente os efésios.

- Eu nunca ouvi falar deste livro “hipócrifo”! – Disse o irmão à Ibraim.

- É apócrifo. Em grego significa “oculto”. Além dos livros que estão na bíblia existiam vários outros livros que contam histórias do começo do cristianismo. São livros históricos, por serem da mesma época dos Evangelhos e do Novo Testamento. Mas foram deixados de lado quando criaram o “cânon” da bíblia.

- Como é? Existem outros livros que não estão na bíblia que foram escritos na mesma época.

- Claro. Muitos outros. Mas alguns foram escolhidos para participarem e outros não. A maioria dos apócrifos são livros cheios de magia e histórias fantásticas e fantasiosas. E por isso foram renegados. Mas, mesmo que não tenham uma influência grande na fé, historicamente eles são importantes pois mostram a religiosidade popular, o que e em que cria o “povão”. Outros apócrifos geram mais controvérsias e alguns teóricos pensam que deviam estar na bíblia, outros dizem que não.

O irmão ouvia Ibraim falar e estava animado com a narração. Sabia que Ibraim era fascinado com a história e cultura turca, mas não sabia que ele entendia tanto assim. Ibraim continuou a história do templo:

- Então. Com apócrifos ou sem apócrifos, lá pelo século quarto praticamente todos os efésios já haviam se convertido ao cristianismo e todos os templos foram fechados por Teodósio I em 391.  Finalmente em 401 o templo foi totalmente destruído por uma multidão liderada por São João Crisóstomo e as pedras foram utilizadas para construírem outros edifícios. Inclusive algumas das colunas da igreja/mesquita de Santa Sofia que vamos ver em Istambul pertenciam ao templo de Artêmis.

O irmão de Ibraim fez uma cara de quem não entendia nada e disse:

- Peraí. Se tudo foi destruído e levado para outros lugares, pedaço a pedaço, o que a gente vai visitar?

- No final do século dezenove uma expedição do Museu Britânico finalmente localizou algumas ruínas do templo. Marcaram o local remontando uma das colunas do templo com as pedras encontradas, restos de colunas variadas e conseguiram montar uma coluna. É só isso que vamos ver. Mas você não consegue entender que por trás daquelas pedras amontoadas tem toda essa história?

- Claro que sim! Vamos logo que acho que o táxi já está esperando. Tem um carro amarelo com uma placa “Táxi” com “k” parado ali.

- Táxi com “k”? – Replicou Ibraim olhando pra janela. Realmente táxi em turco escrevia-se “Taksi”.

- Muito mais prático e fácil não? Esse é o tipo de reforma ortográfica que precisávamos. – Disse o irmão de Ibraim levantando-se e dirigindo-se para o “taksi”.

- Peça pra ele esperar cinco minutos. Vou ao quarto buscar umas coisas.

Ibraim subiu mais uma vez até o quarto, abriu a pasta que guardava as cartas de sua mãe. Estavam organizadas especialmente para a viagem. Com um clipe separando-as e um pequeno papel com nomes como: Éfeso, Selçuk, Izmir, Istambul. Todas eram cópias. Com exceção de duas que estavam agrupadas com um papel de nome “Meryem Ana”, dobrou-as e colocou-as no bolso da jaqueta.

Entraram no táxi e Ibraim pediu ao motorista que o levassem ao templo de Artêmis. O carro saiu do hotel, entrou na rua principal, passou dois quarteirões, o hotel onde Meryem e seu grupo estavam hospedados, virou à direita e dois quarteirões depois entrou em uma estradinha de cascalho.

A estrada era ladeada por oliveiras e o motorista parou ali mesmo, embaixo de uma delas. O irmão de Ibraim foi o primeiro a notar o pé carregado de azeitonas:

- Veja! Os pés estão carregados de azeitonas. – disse o irmão de Ibraim, puxando um galho e colhendo umas cinco azeitonas.

Eles nunca haviam visto azeitonas frescas. Elas eram parecidas com as que compravam em conserva, mas bem mais inchadas e fofas. A pele era mais aveludada, quase peluda. A textura lembrava uma esponja e o gosto não era tão perceptível.

- Será que podemos levar? Eu queria levar uma pro Azeitona. – disse o irmão.

- Ele vai te matar. Ele detesta que você o chame assim. – Riu Ibraim, lembrando da cara que o Azeitona fazia quando ouvia alguém chamando-o pelo apelido. - E acho que você só vai ao Brasil no final do ano, até lá essas azeitonas já apodreceram. – Concluiu Ibraim.

- Então vou tirar uma foto e mandar pra ele. – disse o irmão, tirando a máquina da mochila e já batendo algumas fotos das oliveiras, do táxi, das azeitonas.

Ao terminar a sessão de fotos ele virou-se para Ibraim:

- Muito bem. Conhecemos as oliveiras e as azeitonas. Mas cadê o tal do Templo de Artêmis?

- Eu acho que é ali... – disse Ibraim apontando para o final da estradinha de cascalho.

A estrada terminava alguns metros depois de onde o táxi havia estacionado, era como um descampado onde os carros poderiam fazer o retorno. Havia um homem vendendo chapéus, água e lembrançinhas em um quiosque improvisado em cima de umas pedras que pareciam ruínas.

La no fundo estava ela. Abandonada, cercada de mato e sem nenhum cuidado especial, até mesmo algumas garrafas plásticas de água e refrigerante eram encontradas ao lado. A coluna que marcava onde o mais belo de todos os monumentos da antigüidade um dia esteve.

Bem mais ao fundo a mesquita Isa Bey à esquerda e as ruínas da basílica de São João à direita pareciam olhar e, paradoxalmente, protegerem a coluna do templo de Artêmis.

Os dois olharam-se com um olhar de tristeza. Não foi preciso dizer nada. Em silêncio e como quem vai a um velório desceram até a coluna desviando dos matos e das garrafas. Ao lado da coluna havia uma placa de metal um pouco enferrujada nos cantos e um pouco apagada mostrando como o templo teria sido 2500 anos atrás. Eles ficaram ali por alguns instantes. E, como que em um filme, viam um outro templo construído 3500 anos antes, ainda na Idade do Bronze, e este mesmo local 1000 anos depois teria sido escolhido para abrigar o novo Templo de Artêmis.

Ibraim rompeu o silêncio, falando baixo mas firme:

- Os templos dos deuses gregos e romanos eram diferentes das igrejas de hoje. Hoje os templos são lugares onde as pessoas se reúnem para de alguma forma celebrarem sua fé juntos, por isso tendem a serem grandes e espaços. Na antigüidade os templos eram os lugares onde os deuses habitavam. As pessoas vinham até os templos para entregar oferendas e normalmente não entravam no templo para fazê-lo. Haviam os encarregados dos templos – os guardiões do templo. Se você notar nas religiões orientais budistas, xintoístas, hindu ainda existem estes aspectos de templo como o local de oferenda apenas.

Como quem avançasse o filme eles imaginaram aquele belo templo sendo destruído por Erostrato, a revolta do povo, a visita de Alexandre – o Grande – anos depois, a reconstrução, mais uma destruição desta vez pelos Godos, a reconstrução novamente. Viam o templo ser abandonado, à medida em que as pessoas abraçavam a nova fé cristã. São João Evangelista andando por ali. São João Crisóstomo pregando naquelas colunas, as colunas sendo retiradas, derrubadas e levadas pedaço por pedaço para construírem outros templos em outros lugares.

Como se sai de um sonho, caíram na realidade. Viram à sua frente apenas a coluna, o mato e a sujeira. Com os olhos secos, mas o coração miúdo, saíram e caminharam sob o sol quente até onde o taxista os esperava, fumando à sombra das oliveiras.

Entraram no táxi ainda pesarosos, Ibraim virou-se para o motorista e falou:

- Basílica de São João Evangelista por favor.

O irmão de Ibraim olhou surpreso e falou meio sem pensar:

- Como assim Basílica de São João? Isso aqui é um país muçulmano ou não?

Ibraim riu e apontou para umas ruínas, desta vez um pouco mais bem conservadas que o templo de Artêmis.

- Aquelas ruínas são a Basílica de São João. Os turcos hoje são muçulmanos, mas já foram pagãos e cristãos.  Ontem quando fomos nas ruínas de Éfeso, passamos no final, lá perto de onde encontramos a Meryem, em umas ruínas de uma igreja. Era a famosa Igreja de Maria, uma das sete igrejas citadas no Apocalipse de são João.

- Adoro essas histórias do Apocalipse!  – disse o irmão novamente sem pensar no que falava.

- Pois é – continuou Ibraim, ignorando o comentário – nos anos 400 aconteceu aqui o terceiro Concílio Ecumênico, representantes de todas Igrejas Católicas na época, os ortodoxos do oriente, os ortodoxos do ocidente, os antigos da região onde hoje é a Alemanha e a Holanda, e claro os católicos romanos também. Vieram até aqui para debater a questão da dualidade de Jesus. O bispo de Constantinopla, Nestório, achava que Jesus homem e Deus eram duas coisas separadas e divulgava isso abertamente.  Nas várias reuniões que tiveram aqui terminaram por definir que as duas naturezas eram inseparáveis e que portanto Jesus era Deus e homem indivisível.

- Eu acho isso muito complicado também. – replicou o irmão.

- Eles também acharam e por isso que tiveram de chamar bispos do mundo inteiro para debaterem o assunto. Imagine só. Estamos falando dos anos 400! Não tinha avião, carro. Juntar esse povo dos quatro cantos do mundo não deve ter sido fácil. Mas as conseqüências de ter Jesus como Deus e homem em naturezas separadas seriam muito pior para a fé católica. Pois a própria crucificação de Jesus, morte e todo o processo de salvação estariam destinados a serem divididos nas duas naturezas também. Se o Jesus que morreu na cruz não fosse Deus e homem, não haveria redenção alguma.

- Sei. O Rio de Janeiro não iria ser o mesmo sem o Cristo Redentor também... – disse o irmão fingindo que tinha entendido alguma coisa.

Segurando o riso, não querendo achar graça do que o irmão dissera, Ibraim continuou:

- Como conseqüência disso definiram aqui também que Maria era Teotokos – Mãe de Deus. Ninguém questionava que ela fosse a mãe de Jesus, mas Nestório não gostava do título de Mãe de Deus. Por isso ele havia criado toda a teoria da separação das naturezas. Assim Maria seria a mãe do homem Jesus apenas. Uma vez que a teoria foi por água abaixo, o título vingou. E os cristãos na época começaram a chamar Maria de Mãe de Deus.

- Entendi...

- Então, naquela igreja havia uma parte dedicada a são João, que teria passado seus últimos anos nessa região também. O imperador Justiniano achou por bem construir aqui uma basílica, bem onde acreditam ser o local onde João foi enterrado.

Desceram do táxi e caminharam em direção às ruínas da basílica. Elas estavam mais bem cuidadas que o templo de Artêmis, também era preciso pagar 15 euros para entrar. Pagaram e entraram. Por dentro era muito maior do que parecia. Realmente devia ter sido uma igreja muito grande e importante. Ainda havia colunas que estavam de pé, muitas colunas.

Ibraim, que já tinha assumido o papel de guia turístico pessoal de seu irmão, continuou desfraldando seu conhecimento sobre a Turquia e tudo que envolvia aquele lugar:

- Essa basílica virou um dos principais centros de peregrinação durante a Idade Média. Veja que já é uma igreja maior, feita para agregar os fiéis e não apenas como uma residência dos deuses como era o templo grego.

- E como foi destruída? Foram os muçulmanos? – Perguntou o irmão interessado.

- Mais ou menos. Primeiro, como a ascensão árabe-muçulmana, a basílica foi modificada e convertida em mesquita, isso em torno dos anos 1300, isso durou cem anos. Os mongóis invadiram essa área e destruíram tudo em 1402.

Continuaram andando por sobre as ruínas, imaginando o imperador Justiniano inaugurando o templo, as imensas peregrinações por mais de 600 anos. A transformação em mesquita e finalmente a destruição total pelos mongóis Ibraim e o irmão respiravam história. Estavam ali há apenas três dias e já tinham vivido 3000 anos de história. Era uma curta viagem à Turquia, mas uma longa viagem pelos caminhos que a humanidade percorreu.

Saíram em silêncio e entraram no táxi. Ibraim disse então ao motorista, em turco:

- Meryem Ana Evi lüften.

O irmão escutando aquilo perguntou:

- O que é que tem a Meryem?

Ibraim sorriu e disse ao irmão:

- Não estou falando da Meryem guia turística. Meryem, em turco é Maria. Eu pedi para ele nos levar na “Casa de Maria”, ou “Casa da Mãe Maria”, vai ser nosso último ponto de visita.

O táxi saiu da estrada principal, passou novamente pela estrada que levava ao templo de Artêmis, continuou até as ruínas de Éfeso e passando por trás da cidade continuou a subir as montanhas. Aos poucos a vegetação foi mudando, tornando-se menos árida e seca e mais verde e úmida. O táxi então entrou em um local que parecia um parque, dirigiu calmamente até o fundo, onde encontraram um estacionamento mal organizado, com vários ônibus e dezenas de outros táxis amarelos parados sem ordem alguma. Os motoristas aglutinavam-se embaixo das sobras das árvores, fumando e conversando, esperando os passageiros voltarem da sua visita.

O lugar era realmente parecido com um parque. Na entrada de pedestres, um café à esquerda com mesinhas e gente comendo e bebendo. Cena não vista durante o dia em nenhum outro lugar durante o Ramadã. Do lado direito de quem entrava havia uma loja de lembrancinhas: bandeiras da Turquia, velas, ímãs de geladeira...

Ibraim olhava tudo com os olhos arregalados e um sorriso no rosto.

O irmão que já não estava entendendo nada, e notavelmente não estavam em um sítio histórico, não haviam ruínas ou coisas semelhantes ali. Perguntou então à Ibraim:

- Que lugar é esse Ibraim? Por que viemos aqui?

Ibraim parou ao lado de uma árvore, onde havia um banco e sentou-se. Falou para o irmão sentar-se também e contou-lhe que a última carta que sua mãe havia escrito, ela falava naquele lugar.

O irmão já irritado perguntou:

- Então sua mãe esteve aqui? Mas que lugar é esse? Por que ela veio aqui.

Ibraim continuou:

- Ela nunca detalhou porque veio aqui, nunca escreveu o que aconteceu aqui em detalhes. Mas de todos os lugares da Turquia que ela colocou nas suas cartas. Este é o que ela mais venerava, era o local que ela falava com mais carinho. E pediu que eu bebesse da água daqui e levasse dessa água para onde quer que eu fosse.

- É. Tem um monte de gente com garrafa de água na mão. Olha só. – apontou o irmão, mostrando várias pessoas com garrafas de todos os tamanhos, elas vinham na direção oposta a que eles caminhavam antes de pararem.

- Então – retornou Ibraim – o negócio é o seguinte. Historicamente crêem que são João veio para cá depois de que Jesus morreu e os apóstolos se dispersaram pelo mundo. A missão dele era evangelizar esta área aqui da Ásia Menor.

- Sim. Isso você já disse lá embaixo quando estávamos na basílica e no templo de Artêmis. – disse o irmão mostrando que havia prestado atenção em tudo o que o irmão falara.

Ibraim deu um sorriso e continuou:

- Bem. Dizem os relatos que ao ser crucificado estavam ao pé da Cruz, Maria e João. E, nessa hora Jesus teria dito para João que tomasse conta de sua mãe. E tomar conta era realmente cuidar, levar pra morar na mesma casa e tudo, como se mãe ela fosse de João.

- Nossa. Que barra heim! O amigo dele morre na cruz e ele ainda fica com a mãe pra tomar conta... Isso que é amigo. – Disse o irmão dando uma risadinha.

Ibraim sorriu e disse:

- Pois é.  Dessa forma existem fortes indícios que Maria tenha vindo morar aqui em Éfeso, uma vez que João mudou-se para cá. E, as pessoas hoje crêem que foi nessa casa ali em frente que ela morava.

Ibraim apontou para uma pequena casa que ficava um pouco mais em frente. O caminho por onde vieram dividia-se em dois logo adiante, e pelo declive do terreno iam ficando em alturas diferentes. O da esquerda levava para a parte alta, onde estava a casa. O da direita seguia paralelo ao outro, só que indo para baixo e levava para umas fontes de água lá no fundo. Naquele paredão que se formava entre o andar onde estava a casa e o caminho de baixo, antes de chegar nas fontes as pessoas colocavam pedacinhos de pano, tirinhas, e escreviam pedidos, agradecimentos, orações. O efeito de longe era bonito, pois as tiras balançavam com o vento e dava uma leveza ao lugar, parecendo que a casa era sustentada por uma nuvem.

O irmão, caindo em si, virou-se para Ibraim:

- Você diz, Maria – a mãe de Jesus? – perguntou o irmão meio sem saber o que falava.

- Exato. Por isso o nome “Casa da Mãe Maria”. Claro que não foi necessariamente naquela casa ali, ou em uma outra acolá. Mas que ela morou por aqui depois da morte de Jesus isso é bem provável. O papai disse-me uma vez que quando estavam em Izmir, um dia mamãe saiu e dirigiu até aqui sozinha. Mas ele mesmo nunca veio aqui.

- Então vamos até lá. – Disse Ibraim animado. Quero conhecer esta casa.

- Vai na frente. Eu preciso ficar um pouco aqui pensando. Estou meio confuso. – Respondeu Ibraim.

O irmão foi andando em direção à casa.

Ibraim estava simplesmente com medo. Medo de encontrar ali o que não buscava.  Enfiou a mão no bolso e retirou as cartas que havia separado. De todas as cartas que sua mãe escrevera, aquelas eram as únicas que ele não entendia. Em tudo que escrevia, Jasmim era direta, clara, precisa. Naquelas cartas em que contava sobre aquele lugar onde ele estava ela era diferente. Era possível ver que era a mesma pessoa, não tinha dúvidas que a carta houvesse sido escrita por ela, mas tinha um outro tom, um outro peso na pena.

Ibraim nunca foi um homem religioso. Nunca foi ateu também. Já tinha ido à missa algumas vezes, fez até primeira comunhão e crisma, mas nunca foi muito a fundo. Era um médico, um cientista e não gostava quando a religião entrava no seu meio.

Mesmo não religioso Ibraim tinha o costume de rezar todas as noites. O fazia por pedido de sua mãe e tornou-se hábito. Abrindo uma das primeiras cartas de Jasmim, já amarelada e com as marcas de dobra quase rasgando o papel, leu:

“Meu filhinho,

Você ainda não deve sabe ler e escrever e essa é uma das cartas que peço que seu pai leia pra você. Você vai crescer, estudar, ficar mais forte, mais bonito e mais inteligente. Mamãe quer lhe pedir uma coisa, na verdade várias pequenas coisas. Além de pedir que seja um homem bom, reto e justo – e nisso eu confio que seu pai vai lhe mostrar e educar, pois ele é um homem bom, reto e justo.

Em outra carta conversaremos sobre a fé e essas coisas, cada coisa a seu tempo. Mas agora eu apenas quero lhe pedir que toda noite, antes de dormir, peça ao Papai do Céu que lhe abençoe e guarde. Peça pela paz e pelos responsáveis por ela. E, aos poucos decore e reze a Ave-Maria. E sempre que precisar de algo peça à Mãezinha do Céu. Papai vai rezar com você até você aprender. “

Uma lágrima escorria dos olhos de Ibraim. Aquela carta tinha sido escrita há quase quarenta anos, mas ele ainda se sentia um menino nos braços da mãe. Dobrando a carta com cuidado. Lembrava do pai lendo e relendo a carta, a imagem do pai rezando a Ave-Maria junto dele toda noite veio à mente. E depois que o pai casou-se novamente a madrasta também fazia o mesmo. Lembrou-se do irmão e da irmã ainda pequenos, provavelmente com um ou dois anos. Ibraim devia ter quatro anos e foi ele quem ensinou os irmãos a rezar.  Ibraim, ainda menino, achava que a “Mãezinha do Céu” era sua própria mãe, pois seu pai havia falado que sua mãe estava no céu. Aos poucos quando foi crescendo foi entendendo que Maria era uma coisa e Jasmim era outra. E cada vez achava mais confusa essa história de “Maria, Jesus, Deus, Pai, Espírito Santo”. Chegou a fazer a primeira comunhão, mas nunca foi além disso. Mas a Ave-Maria ele ainda rezava todas as noites.

Abriu uma outra carta que estava no bolso.

 

“Ibraim,

Você agora é um rapaz feito. Provavelmente já está tendo de barbear-se e aquela voz e jeito de menino já não lhe acompanham mais. Mas você será sempre meu filhinho pequenino. Aquele que em meus sonhos eu carreguei, aquele que em pensamento acalantei em meus braços.

Não peço que concorde com nada disso que vou escrever, mas simplesmente que leia e aceite que eu sou assim. O que você aceita e entende para sua vida é sua escolha, não minha, nem de seu pai. Não posso e não tenho o direito de escolher por você, da mesma forma não tenho o direito de negar-lhe conhecer em que creio e em que cri.

Já lhe contei várias vezes da minha infância, da minha formação muçulmana, da minha visão turca sobre a fé muçulmana. Acredito em muitas coisas e vejo o lado bom em muitas coisas do alcorão. Porém, como uma mulher que queria viver além das fronteiras que a mesquita me impunha, aos poucos eu questionava e, o questionamento dentro da fé muçulmana levou me ao rompimento de certa forma com os ensinamentos, rebelei-me aos olhos do Islam., e tive de tornar-me cristã, ao casar-se com seu pai.

Tornar-me católica foi muito fácil, principalmente em um país como o Brasil, onde a fé está presente em todo lugar, basta ver os nomes das ruas, das cidades, das pessoas. Em todo lugar há um José, uma Maria, uma igreja de santo Antônio, uma imagem de Aparecida. E, ao mesmo tempo, não existe cobrança, não existe perseguição ideológica ou coisa parecida. 

Eu tive de estudar um pouco da fé, e talvez até um pouco mais do que os próprios católicos, pois para casar-me com seu pai, tive de ser batizada e batismo de adulto na Igreja não é tão simples. O que quero dizer é que ao casar-me com seu pai eu sabia o que fazia. Já não cria e de certa forma rejeitava a fé muçulmana, mas também não abraçava totalmente a nova fé. Achava bonita algumas coisas, questionava outras, pelo menos aqui eu podia questionar. Isso era bom.

Eu pergunto-me hoje em que creio, em que não creio. Eu não tenho uma resposta pronta. Como eu disse tornar-me católica foi fácil, o difícil foi tornar-me cristã e aceitar a cruz que me entregaram.

Há muitos anos eu pedi que você rezasse todas as noites antes de dormir, uma Ave-Maria. Imagino que seu pai lhe tenha ensinado e você tenha aprendido. Eu lhe pedi isso pois não sei como nem o porquê, um dia depois de muito batalhar e muito sofrer, finalmente encontrei consolo e calma. E foi nos braços dessa Mãe, na casa de Maria, na Turquia, em Éfeso que encontrei a força e a tranqüilidade para suportar tudo o que tive de passar. De certa forma isso ajudou-me a aceitar meu passado e meu destino. Espero que ao rezar a Ave Maria você de alguma forma seja tomado dessa força e tranqüilidade que lá encontrei. Posso parecer uma boba, uma dessas loucas crentes e beatas que buscam milagres em todos os lugares e em tudo que vêem. Mas não sou e você sabe disso. Ali realmente algo diferente aconteceu e se hoje no final da gravidez, encontro forças para escrever para um filho que jamais verei, é de lá, daquela pequena casa que tiro as forças para tal. Se você um dia for à Turquia, não deixe de ir lá. Talvez la você venha a entender-me melhor.Queira Deus você venha a compreender você mesmo. Quando estiver por lá, beba da água que jorra de suas paredes e se possível  leve consigo um pouco dessa água para ter sempre ao seu lado.

Não importo-me se você vai ser um muçulmano, um cristão, um budista, um ateu. Eu sei que você será um homem bom pois foi lá que entreguei-lhe à Mãe Maria, e ela será sua guia e proteção para sempre.

Espero que você entenda que é justamente por ter essa fé que consigo passar pelo que passo, pois é a fé que me dá a certeza que um dia, em algum lugar, encontrar-me-ei com você e nos abraçaremos e conversaremos sobre tudo isso.

Já começo a sentir as contrações do parto. Imagino que em poucas horas você nascerá. Não queria terminar de escrever agora, tenho tanta coisa pra contar, tanta coisa pra ensinar, mas acho que você terá que aprender de outros modos, quem sabe aprenderá a  ouvir-me de outra forma.

Cumpra o seu destino meu filho querido, e seu destino é o mesmo de todos os filhos de Deus: ser bom e ser feliz.

Estarei sempre contigo.

Mamãe Jasmim.”

As lágrimas agora simplesmente jorravam dos olhos de Ibraim. Havia lido aquela carta umas centenas de vezes. E, cada vez que lia entendia e via algo diferente e não gostava daquela carta. Sua mãe não era uma pessoa religiosa, pelo contrário, enfrentou a religião e o seu mundo para ser feliz. Mas por outro lado mostrava um lado religioso e místico ali na última carta que havia escrito. Ibraim não conseguia entender a fé de sua mãe. Na verdade não entendia fé alguma. Ela enfrentou o mundo islâmico, casou-se com um não-crente e mesmo assim ainda pedia que ele bebesse daquela água, coisas de religiosidade popular. Como Ibraim gostaria que sua mãe não houvesse escrito aquilo. Seria tão mais fácil entendê-la.

Ibraim não duvidava que Maria pudesse ter vivido por ali. Havia até algum fundo histórico. Mas acreditar que houvesse algum poder sobrenatural naquele lugar era muito para sua mente. Maria, Artêmis, Jesus, Maomé, João. Para ele era tudo manifestação de uma mesma necessidade das pessoas simples em entenderem e enfrentarem seu mundo. Ele tinha medo de descobrir que sua mãe não era a heroína que ele sempre sonhara. Tinha medo de descobrir que ela era somente mais uma entre todos aqueles.

Estes pensamentos tomavam conta de Ibraim. E ao mesmo tempo ele tinha outros medos. Embora não pensasse que fosse possível, tinha medo de ele também tornar-se um daqueles bobos que iam ali rezar para uma mulher que havia vivido por ali por perto dois mil anos atrás e beber da água que saia das pedras ao lado da casa. Não, isso não podia acontecer com ele.

O medo aumentava. O que sua mãe queria dizer ao falar que ele precisava ir ali descobrir suas origens. E se ele não gostasse do que descobrisse.

Ibraim guardou a carta. Olhou para a casa. Olhou para a parede cheia de tirinhas de pano. Uma leve brisa soprava e os paninhos mexiam alegremente, o sol batia forte e as sombras que as franjas de pano faziam davam uma beleza e leveza ao local. O vento ficou um pouco mais forte e os panos batendo mais forte faziam um barulho gostoso. Algumas tiras desgrudaram-se da parede e voaram. Pareciam borboletas em revoada, voavam alto e sumiam ofuscadas pelo sol. Uma tira pequenina, fininha como uma fita do Senhor do Bonfim voou na direção de Ibraim caindo no banco onde ele estava. Ibraim pegou o pedacinho de pano e leu:

Por que temes? Não estou eu aqui que sou sua mãe?

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