terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Capítulo IX - Atatürk - Istambul

Capítulo 9

Atatürk

Istambul

 

Mohamed abraçou e despediu-se de Ibraim e seu irmão umas trezentas e cinqüenta vezes. Insistiu que eles telefonassem caso precisassem de qualquer coisa em Istambul e mais uma vez convidou-os a voltar qualquer dia desses para ficarem mais tempo.

O avião estava cheio, lotado, mas Ibraim e o irmão conseguiram ficar um ao lado de outro. Ibraim na poltrona do meio e o irmão na janelinha.

-Senhores passageiros, dentro de alguns instantes pousaremos no Aeroporto Internacional Atatürk, em Istambul. Retornem seus assentos à posição vertical, apertem os cintos de segurança,  travem as mesinhas à sua frente e desliguem qualquer equipamento eletrônico que estejam utilizando.

As pessoas começaram a movimentar-se, guardarem bolsas e a ajeitarem-se em seus assentos. Os anúncios continuaram:

-São 17h05 em Istambul, a temperatura no momento é de 27 graus celsius. Durante nossa aproximação vocês poderão ter em ambos os lados da aeronave uma boa visão da cidade, do Estreito de Bósforo e bem ao fundo poderão avistar o Mar Negro.

  "Mar Negro, Estreito de Bósforo, Istambul” - Aquelas palavras ecoaram em suas mentes por alguns instantes. Algumas palavras eram mágicas e tinha o poder de levar as pessoas ao passado em um piscar de olhos.

 

O irmão de Ibraim lembrou-se do tempo de escola. Sua professora de Geografia era uma mulher enorme e monstruosa que detestava o que fazia e parecia detestar ainda mais os seus alunos. Era uma “monstra”, pelo menos era assim que os alunos referenciavam-se à ela, quando não usavam outros termos mais baixos. E, como conseqüência devasta de uma péssima referência educadora em uma época da vida que devia ser repleta de descobertas e encantamento, o pobre do irmão de Ibraim odiava as aulas de geografia e achava que odiava a ciência Geografia como um todo. Uma vez como dever de casa ele teve de localizar e pintar os mares e oceanos de um mapa-múndi. Além de pintar os cinco continentes cada um de uma cor. Ele pintou todos os mares e oceanos de azul, porém o Mar Vermelho ele pintou de vermelho e o Mar Negro de preto, cuidadosamente deixando um espaço para escrever o nome do mar. Não que ele não soubesse que o mar não era negro ou vermelho, mas achou interessante colocar em cores o que existia no nome. Dona Hilda não gostou das cores dos mares e deu-lhe nota zero, pois para ela mar era “azul da cor do mar” e nenhuma outra cor. Mesmo com o trauma causado por aquela monstruosidade de pessoa não tiraram dele a curiosidade. Detestava as aulas de geografia, mas amava os mapas, a história dos povos, a diversidade. Mesmo sem entender uma palavra do que dona Hilda lia, pois ela não explicava nada, apenas lia os textos dos livros pseudo-didáticos na sala de aula. Ele chegava em casa e abria os livros em busca de figuras dos países, cidades, povos. Com o dinheiro da mesada ele foi até a loja da FAE na rodoviária e comprou um Atlas, com capa dura e tudo! Todo dia ele abria o Atlas e ficava ali viajando, página por página. Lembrava precisamente do dia em que passeava com os olhos pelos limites da Europa com a Ásia e ver ali, naquele pequeno estreito a linha divisoria dos continentes. E agora estava ele acima daquela mesma linha, onde a Europa e Ásia se fundiam, onde o Ocidente e o Oriente se separavam.

 

Ele achava que os governos deviam fazer um esforço para colocar nomes nos lugares de tal forma que pudessem ser lidos lá do alto, ele achava que ver a terra da janelinha do avião devia ser como olhar um mapa, vendo os limites, as fronteiras, os nomes das cidades, dos países. E uma vez que os governos não tinham feito nada a respeito, ele o fazia em pensamento, e assim o fez: de olhos fechados visualizou o mapa. Abriu novamente os olhos e pela janelinha viu um canal estreito e longo, que ligava o Mar Negro ao Mar de Mármara, no Mediterrâneo – parecia que podia ler Estreito de Bósforo, escrito em itálico sobre o canal. Uma cidade infindável estendia-se pelos dois lados, e ele via escrito Istambul e entre parênteses Constantinopla.

Duas belas pontes sustentadas por cabos de aço, estendiam-se sobre o Bósforo, pareciam ter pousado graciosamente ali, e flutuavam sobre os dois continentes. Ligavam o Ocidente ao Oriente. A Ásia à Europa. A Antigüidade à Modernidade. Fazendo assim de Istambul a mais oriental das cidades ocidentais e a mais ocidental das cidades orientais, pois era a única que espalhava-se pelos dois continentes. Enquanto o avião contornava o Bósforo ele recordava que aquela cidade já fora a maior e mais importante cidade do mundo, a capital do Império Bizantino, a Nova Roma, capital do Império Romano e finalmente a capital do Império Otomano. Mesmo sem todo o glamour quando era chamada de Bizâncio ou Constantinopla, Istambul ainda impressionava. Era uma cidade imensa, gigante.

Ibraim quase esmagava o irmão para tentar ver alguma coisa também. E aquele estava muito mais fascinado e excitado que esse. Como uma criança em um parque de diversões ele apontava para um lugar qualquer e falava:

- Olha a torre Gálata...

- Veja aquela ponte, ela foi construída recentemente...

- Veja! Mesquitas e os minaretes... por toda a cidade!

E sem pausar um segundo para respirar continuava:

- Olha como Istambul é grande e espalhada, é hoje a terceira maior cidade do mundo! Não contando a área metropolitana é claro, mas apenas a cidade com seus limites ela é até maior que São Paulo. – dizia Ibraim em um fôlego só, notadamente eufórico e feliz.

- É. Mas contando área metropolitana São Paulo e Cidade do México são muito maiores. – disse o irmão apenas para contrariar um pouco a Ibraim.

- De qualquer maneira é grande, gigante.

E assim ele continuou falando das várias partes da cidade e de todos os aspectos que a envolvia, da arquitetura, das artes, da vida do dia-a-dia, até que finalmente o avião aterrou.

O Aeroporto Internacional Atatürk era proporcional à cidade: era gigante! Desde a porta do avião até o local onde recolheriam a bagagem eles andaram por quilômetros de corredores, esteiras rolantes, e rampas. As malas, uma vermelha e uma azul, já estavam lá quando chegaram. “Elas devem ter vindo por um caminho menos tortuoso” – pensou ele.  Pegaram as malas e saíram pelo portão onde estava escrito “Çercik / Exit”. Dando um pequeno salto – ele virou para Ibraim e disse: “Não hesite, pule”. Ibraim não entendeu nada e deu apenas uma risadinha meio sem graça enquanto balançava a cabeça em desaprovação.

O salão de desembarque estava cheio. Uns cinqüenta homens estavam lado a lado com placas com nomes. Haviam vários nomes ocidentais, alguns apenas com o logotipo de alguma multinacional, alguns nomes completamente estranhos mas com alfabeto latino e por fim um grupo de placas apenas com rabiscos indecifráveis – árabe talvez.

Finalmente uma placa escrita Ibraim Ramos surgiu e ambos encaminharam-se até a pessoa que a segurava. O rapaz devia ter uns 25 anos, magro e estatura mediana, uma barba bem rala e a camisa de manga curta com gravata preta fazia lembrar mais um caixa de banco. Ele sorriu mostrando que entendeu que eram os dois que ele esperava e imediatamente fechou o sorriso. Colocou a placa debaixo do braço, pegou a mala que Ibraim carregava e saiu sem falar nada. Os dois ficaram alguns segundos parados olhando o que se passava quando o rapaz parou, olhou pra trás e fez sinal para que eles o seguissem.

 Eles se apresentaram e foram em silêncio até o estacionamento. Mais alguns quilômetros de caminhada e finalmente entraram em uma van branca. Ele provavelmente não falava inglês e Ibraim resolveu não conversar em turco.

Istambul era impressionante. Eles esperavam ver uma cidade suja, poeirenta, pessoas cheias de turbantes e mulheres vestidas de burca e não foi o que encontraram. A limpeza da cidade realçava aos olhos, para uma cidade tão grande, de um país muçulmano, e de um país emergente, era muito limpa.

Com seus mais de dez milhões de habitantes padecendo e agüentando o imenso calor do verão e a neve pesada do inverno, Istambul mantinha-se firme e pulsante, mesmo já com seus 2.500 anos de vida, parecia uma adolescente que, trazendo dentro de si um passado glorioso e intenso, tinha uma ânsia contida de quebrar com tudo que o Islam a impunha. Sem conseguir ser completamente livre, a cidade rebelava-se em pequenas coisas.

Ibraim não se conteve e começou a falar:

- São três em uma. Foi fundada uns 600 anos antes de Cristo foi chamada de Bizâncio em homenagem ao rei Bizan, já esteve nas mãos dos persas, dos espartanos, atenienses, dos macedônios... Finalmente em 330 d.C. tornou-se a capital do império romano, reconstruída por Constantino foi chamada oficialmente de Nova Roma, mas o nome nunca pegou, o mundo a chamava de Constantinopla. E assim ficou conhecida até hoje. Durante o período otomano, os árabes já a chamavam de Istambul, mas oficialmente só mudaram o nome da cidade em 1930.

O irmão estava curioso com o nome do aeroporto.  E perguntou:

-E esse tal de Atatürk? Você sabe quem é? Quem foi? O aeroporto leva o seu nome. Mas eu vi esse nome em Selçuk e Izimir também. Estava em várias estátuas, bandeiras, adesivos, nomes de ruas...

Ibraim ajeitou-se na van e como quem estivesse dando uma aula começou:

-Foi o primeiro presidente e fundador da República da Turquia. Antes dele a Turquia era um país que ainda trazia a base do império otomano-muçulmano nas leis e tudo mais. Era praticamente um estado teocrático assim como a maioria dos países árabes hoje. E, ainda tinham os sultões e califas que tinham um poder ilimitado. Ele simplesmente acabou com o poder dos califas e dos sultões. Criou o novo Estado da Turquia e as novas leis baseadas em leis modernas. Ele separou o Estado da religião, fazendo da Turquia o único país muçulmano em que as leis que regem o país não são inspiradas no Islam. O sistema legal da Turquia é baseado no direito romano. Graças a ele as mulheres turcas não precisam usar véus, podem ir à universidade e tem basicamente os mesmos direitos dos homens. Em cidades grandes como Istambul, Ancara, Izmir você nunca seria maltratado por não seguir o Ramadã, e, aqueles que lhe bateram por exemplo estariam presos.  É claro que em alguns lugares afastados os sultões e califas ainda mantiveram um pouco do poder, mas isso diminuiu consideravelmente.

- E Ataturk é nome? Sobrenome?

-Sobrenome. O nome dele era Mustafá. Mustafá Kemal, mas Kemal foi um nome dado a ele pelo professor e significa “perfeição”. Eles tem essa mania de depois de uma certa idade receber outro nome. O mesmo acontece em alguns países anglo-cristãos onde as pessoas recebem um segundo nome na Crisma. Antes de Atatürk, pra você ter uma idéia, os turcos não tinham sobrenome! Atatürk, mudou tudo: o sistema penal, a organização militar, o sistema educacional e fez com que os turcos criassem sobrenomes para suas famílias. Isso por volta de 1930! Outro dia praticamente! E ele mesmo resolveu que seu sobrenome seria Atatürk, que significa Pai dos Turcos.

-Modesto ele, não? – disse ironicamente irmão.

-Sim. Não foi muito humilde da parte dele. Porém, mesmo assim ele é realmente considerado o pai da nação Turca. Eles o idolatram aqui. E não é por menos. Sem ele a Turquia seria talvez dividida, um monte de paisecos teocráticos, pobres e injustos.

O caminho do aeroporto até a cidade velha foi percorrido em meia hora, em um trânsito leve para uma metrópole daquele tamanho. Somente na parte antiga onde as ruas eram minúsculas e apertadas é que encontraram alguma resistência no trânsito. Mas o motorista que não abrira a boca desde que partiram conseguia entrar por becos e ruelas que eram tão estreitas que até davam a impressão de que a van teria de encolher para passar por elas. Alguns minutos depois deixou-os junto com as duas malas na frente do Hotel História reservado por Mohamed.

Entraram rapidamente no hotel, fizeram o check-in, jogaram as malas no quarto e em dez minutos já estavam andando por Istambul. O hotel ficava bem próximo à Mesquita Azul e à Hagia Sofia e, entre as duas, uma enorme praça cheia de fontes, grama e gente.

Centenas de pessoas estavam sentadas na grama em grupos de cinco, dez pessoas. Em frente de cada grupo uma toalha no chão e várias garrafas de água e muita, muita comida.  Barraquinhas como as de quermesse espalhavam-se pela praça. As pessoas compravam quibes, esfihas, milho cozido e levavam para os grupos. Mas ninguém tocava nas garrafas de água, ninguém tocava na comida. Pareciam estar esperando um convidado importante chegar.

Como se fossem vigiados pelas duas gigantescas mesquitas apenas conversavam. O sol se punha por trás da Mesquita Azul e o céu assumia uma cor púrpura-alaranjada e de um lado via-se apenas a silhueta da Mesquita, seus seis minaretes, como uma pintura em nanquim. Do outro lado, que ainda recebia umas nesgas de sol, a Hagia Sofia se acendia e tornava-se ainda mais bela.

Um sistema de alto-falantes disperso por várias praças da cidade anunciava as orações do fim do dia. Era o último dia de Ramadã. As orações eram como mantras e aparentemente os fiéis apenas ouviam, ninguém repetia nada, ninguém dizia amém ou coisa parecida. E, após uns cinco minutos, assim como começaram, as orações terminaram. Era o sinal de que o Ramadã havia acabado.  Como quem estivesse padecido no deserto por dias sem uma gota d’água sequer, eles abriam as garrafas e despejavam a água garganta abaixo, acabando com a secura que o longo dia de início de outono tinha trazido. Em poucos segundos saiam de uma carestia e completa abstenção de alimento e água, para uma noite de fartura e excesso de tudo.

Ibraim e o irmão apenas olhavam e a mesma cena repetia-se em todos os cantos: bebiam e comiam avidamente. As caras e bocas que faziam eram tais que os dois também não resistiram e foram até as barracas comprar algo. Ibraim comprou um milho cozido e o irmão comprou um quibe. Sentaram em um banco de praça, segurando cada um, uma garrafa de água mineral, brindaram.

-Ao Ramadã. À Turquia. – disse Ibraim

-Ao FIM do Ramadã! – disse o irmão.

Ficaram ali sentados por um tempo, Ibraim tentou ligar para Meryem algumas vezes, mas a ligação não completava. Andaram mais um pouco pelos quarteirões de Sultanamed e voltaram ao hotel. Estavam muito cansados. Mesmo assim Ibraim ainda tentou mais uma vez falar com Meryem ao telefone. Não houve resposta.

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