terça-feira, 23 de junho de 2009

Capítulo XI - Gálata - Visão do Alto


Ainda em silêncio saíram do café, caminharam até a praça Tünel onde entraram novamente em um trem funicular. Desta vez no funicular antigo e bem menor que o outro mais novo que ia até a praça Taksim, porém este tinha um charme e mantinha as características de mais de um século que aquele outro não tinha. Ao sairem da estação depararam-se com a Torre Gálata.

Era uma torre cilíndrica de 66 metros de altura com um telhado em forma de cone e que dominava a paisagem daquele lado da península chamada de Corno de Ouro, que divide o lado europeu do asiático da cidade. A torre havia sido construída em 1348, quando Istambul ainda era conhecida por Constantinopla. Elevadores que haviam sido colocados séculos depois levavam os turistas até o topo, onde podiam apreciar a vista do Bósforo enquanto tomavam um café ou comiam no restaurante. Também, durante a noite uma casa de shows funcionava no local.

Os dois irmãos pagaram a entrada, não sem antes Ibraim reclamar do alto preço do ingresso, entraram no elevador com mais um casal de turistas americanos e maravilharam-se com a vista ao chegarem ao topo.

Ficaram olhando e tirando fotos por alguns minutos, viram que era um ritual comum os turistas tentarem contar os centenas de minaretes das mesquitas da cidade e começaram também a contar, quando assustadoramente os celulares dos dois irmãos tocaram ao mesmo tempo. Eles entreolharam-se surpresos, riram e checaram o visor para verem quem ligava.

- É do Brasil! – Disse o irmão à Ibraim.

Ibraim sorriu ao reconhecer o nome que aparecia na tela do aparelho.

- É a Meryem!

Os dois atenderam as chamadas e foram para dentro do café, onde o vento não atrapalharia e conseguiriam conversar.

- Mano? É a Lúcia aqui! – disse a pessoa do outro lado do mundo.

- Lúcia!? Que saudades! Está tudo bem? 

- Tudo bem? Eu que pergunto! Estou tentando falar com vocês desde ontem. Um tal de Mohamed – primo do Ibraim – ligou pro papai preocupadissimo com vocês. Ele disse que o rapaz que ele enviou para buscá-los no aeroporto de Istambul não os encontrou e que também vocês não haviam feito check in no hotel que ele havia reservado.

- O papai deve ter entendido errado. Está tudo bem aqui. Chegamos bem e estamos conhecendo a cidade.

- Então posso ficar despreocupada, né? E no mais? Tudo bem?

- Claro que pode. No mais tudo bem. Ah! Tenho uma novidade pra lhe contar. Adivinha quem está apaixonado?

- E desde quando suas paixões são novidades? Você se apaixona até em velório! E olha que isso não é apenas uma força de expressão! – disse Lúcia rindo alto do outro lado da linha – lembra-se do enterro da tia Carminha?

- Aquilo foi um erro. Mas estou falando do Ibraim. Ele está a-pai-xo-na-do. – disse o irmão pausadamente, enfatizando a palavra apaixonado.

- Não acredito! Ele está aí com você?

- Sim. Ele está ao telefone falando com ela. Lúcia, ele é outra pessoa, espero que essa paixão dure, pois tudo o que há de bom em Ibraim está sendo ressaltado agora.

- Fico feliz mesmo. Dê um beijão nele por mim e diga que quero conhecer a felizarda! Agora tenho que ir. Tente falar com esse tal de Mohamed. Te amo mano! Beijo!

- Tá bom. Um beijão pra você e um outro pro papai.

Ibraim estava sentado à mesa do café sorrindo. Ao ver o irmão o chamou para sentar, pediu um outro café para o garçon e foi logo dizendo:

- Ela só chegou a Istambul hoje. Disse que teve problemas com o telefone e só conseguiu ligar hoje. Ela está aqui perto e está vindo nos encontrar.

- Viu só? E você preocupado à toa.

Ibraim continuou falando tudo o que conversara com Meryem, repetindo várias vezes a mesma coisa. Falando de detalhes da voz, de intonações, da alegria que foi saber que ela ainda estava interessada.

Tomaram o café e Ibraim por um segundo lembrou-se que o irmão também havia recebido uma ligação.

- E quem que ligava do Brasil? – perguntou Ibraim sem tirar o sorriso do rosto.

- Era Lúcia. Ela lhe mandou um beijo e é claro que contei pra ela da Meryem – ela ficou hiper-super-contente.

- Seu fofoqueiro. – Disse Ibraim, sem parar de sorrir.

- Mas por que ela ligou? Só pra conversar?

- Isso é o que é mais estranho. Ela disse que o Mohamed, seu primo, ligou pra eles dizendo que a gente havia sumido. Que não aparecemos no aeroporto de Istambul e que não fizemos check-in no hotel que ele reservou.

- Que coisa estranha. Mais tarde vou ligar pra ele. Ele deve ter se confundido com... – e sem terminar a frase Ibraim levantou-se abruptamente ao ver que Meryem entrava no restaurante.

Ela estava mais deslumbrante que nunca. Vestia calças compridas vermelhas e uma camisa branca trabalhada e bordada. Sobre os ombros um lenço vermelho com motivos turcos também bordados sobre o pano. Os cabelos negros caiam sobre o ombro e ao ver Ibraim os lábios tão vermelhos como o lenço, se abriram desenhando o mais belo sorriso. Ibraim abraçou-a e ela retribuiu o abraço com um beijo que logo transformou-se em uma cena de cinema.

Os dois pareciam dois amantes que reencontravam-se após uma longa e dolorosa guerra. Ninguém diria que conheceram-se outro dia, ao contrário, pareciam serem muito íntimos. As pessoas olhavam para eles, algumas sorriam, um ou outro gesto de desaprovação.  Lágrimas escorriam pelo rosto de Meryem. Ela tentava enxugar e esconder a emoção, mas isso só fazia mais lágrimas escorrerem. Ibraim achou-a ainda mais linda.

Entregando um guardanapo a Meryem, Ibraim convidou-a para sentar-se à mesa em que estavam. Vendo o irmão de Ibraim ela cumprimentou-o e sentou. Ela estava sem graça por ter sido tão impulsiva.  O irmão vendo que Ibraim e Meryem precisavam ficar a sós disse:

- Que bom que você chegou Meryem. Eu estava pronto para ir experimentar um banho turco e sei que Ibraim não quer ir. Assim você faz companhia para ele.

- Banho turco? Você não disse nada sobre isso ... – falou Ibraim, não entendendo que o irmão havia inventado aquilo naquele instante.

- Você que não ouviu! Devia estar com a cabeça nas nuvens. Vou indo. A gente se comunica via mensagem no celular ou se encontra no hotel mais tarde. – Dando um tapinha no ombro do irmão e piscando para Meryem, despediu-se e dirigiu-se ao elevador, deixando os dois sozinhos.

Ibraim e Meryem ficaram olhando um para o outro por alguns instantes. Olhavam-se com carinho, sorriam, porém Ibraim notou que havia algo triste e complexo no olhar de Meryem. Ao pegar na mão dela ela chorou novamente. Parecia tão frágil e carente – completamente diferente daquela guia turística brava e durona que brigava com os turistas que escalavam as ruínas de Éfeso.

Meryem respirou fundo, enxugou novamente as lágrimas e começou a dizer a Ibraim:

- Ibraim. Eu nunca senti por ninguém o que sinto por você, e, confesso que cheguei a pensar que era possível que algo acontecesse. Mas a realidade em que vivo é algo que não permite que eu sonhe, e, antes de que nos envolvamos mais eu preciso lhe pedir que se afaste. Eu lhe disse que não havia recebido suas ligações, que tive problemas com o telefone, mas na verdade eu estava tentando ignorar suas ligações e tinha a intenção de nunca mais procurá-lo.

- Do que você está falando Meryem? Como você não pode sonhar? Eu também nunca senti o que sinto por você por ninguém na minha vida. Tudo isso é muito novo pra mim. Mas eu prometo que não a farei sofrer.

- Deixe-me terminar Ibraim. A história é um pouco longa. – Interrompeu Meryem.

- Como eu dizia, eu não iria voltar a procurá-lo, porém hoje de manhã recebi uma ligação de seu primo, Mohamed. Ele é um grande amigo e defensor dos ideais da República Turca e da laicidade do governo, além de muito respeitado em Selçuk e Ismir. Ele queria saber se você havia entrado em contato comigo, pois você não havia feito check-in no hotel de Istambul.

- Ele ligou pra minha irmã no Brasil também a respeito disso. Ele deve estar louco. Nós chegamos no aeroporto e já havia alguém que ele havia enviado nos esperando, fizemos o check in no hotel na mesma noite.

- Isso é estranho. De qualquer forma, eu liguei para ver se você estava aqui e para pedir que você deixe a Turquia imediatamente após sua apresentação no congresso depois de amanhã. Esse lugar não é seguro pra você.

- Deixar a Turquia? Meryem, eu tenho pensado em mudar-me para cá, para poder ficar mais perto de você.

- Não Ibraim! Você precisa ir assim que seu congresso terminar. – disse Meryem, tremendo e novamente chorando.

Ibraim segurou as mãos de Meryem com força e com uma suavidade e ao mesmo tempo autoridade disse:

- Meryem. O que está acontecendo? Conte-me tudo.

Meryem respirou fundo. Enxugou novamente as lágrimas e começou a contar a Ibraim toda a sua história. Ela havia nascido na região da Capadócia, onde mesmo depois da implantação da república, os sultões ainda mantinham poder. Seu pai era um pequeno empresário da região, possuia uma gráfica e ela era a única filha. Sua mãe havia falecido quando ela tinha dez anos. O pai de Meryem foi sempre firme e muito presente na educação da filha, garantindo que ela fosse à escola, coisa que muitas mulheres na região não faziam. Eles tinham somente uma falha muito grande do ponto de vista turco-muçulmano: eram curdos.

Os curdos representam cerca de vinte porcento da população turca, porém mesmo com algumas liberdades conseguidas, ainda são considerados uma subraça, não podem utilizar sua língua nas escolas, tem direito a apenas cinco horas semanais em programas de rádios e por aí vão várias outras restrições que fazem do povo curdo, um povo muito sofrido e com a identidade ameaçada na Turquia e em todo o mundo muçulmano.  Os curdos eram humilhados, mas também eram muito violentos quando atacavam, sem piedade e sem dó, fazendo com que a população em geral também não os apoiasse.

Meryem e o pai viviam normalmente até quando, em uma das inúmeras guerras nos anos 80, seu pai fosse condenado à morte e executado por publicar livros didáticos em curdo, e utilizar a língua curda era proibido na Turquia até 1991.

O sultão Alikabar era o homem mais rico e poderoso da região, controlando tanto o governo local, a economia e até mesmo as mesquitas. Ele aplicava as leis da república apenas superficialmente, fazendo com que na realidade a região fosse controlada por ele e pelo seu entendimento da lei e do Alcorão. Ele era um homem mais velho, com seus 60 anos, e possuía 3 esposas. E, Meryem, com seus treze anos foi entregue a ele pelo tribunal que julgava os envolvidos na guerra.

Meryem viveu razoavelmente bem por dois anos, indo à escola e fazendo tudo o que uma menina turca naquela região fazia – o que não era muita coisa. Porém quando completou quinze anos notou que algo mudava. O Sultão visitava mais o harém onde ela vivia e a chamava para conversar sobre frivolidades. Um dia ele disse que ela havia sido escolhida para ser sua quarta esposa.

Meryem não podia suportar a idéia de casar-se. Ainda mais com um dos homens responsáveis pela morte de seu pai. Tentou fugir várias vezes, mas sempre era resgatada por um dos associados do sultão.

Com dezesseis anos foi forçada a casar-se com o sultão e passou a ser submetida às obrigações da mulher casada. E, além de ter de suportar o sultão e suas investidas, ainda passou a enfrentar a hostilidade das outras esposas. Como quarta esposa do sultão, ela possuía um status de empregada na casa, embora fosse a única das mulheres do sultão que havia estudado, era responsável pelos afazeres da casa e por controlar os outros empregados.

O sultão Alikabar foi afeiçoando-se mais e mais de Meryem, e, no segundo ano de casamento, ofereceu-a uma casa em uma outra vila menor, onde passara a ser a única esposa do sultão.

Meryem vivia razoavelmente feliz, a não ser nos dias em que o sultão a visitava, o que era algo como uma semana a cada mês. Todo o ritmo da casa era diferente quando o sultão estava. Muito mais restrito e aparentemente com uma distância enorme entre Meryem e os empregados. Nos outros dias era o contrário. Meryem era querida e amada pelos empregados e por toda a vila. E, justamente por ser assim, conseguiu com uma das empregadas, que tinha um primo em Istambul, que entrasse com o pedido de divórcio. Meryem sabia que se entrasse com o pedido em Ismir ou Selçuk, onde o Sultão possuía uma força muito grande, jamais iria adiante.

O processo foi terrível, e quando o Sultão recebeu o anúncio que Meryem havia solicitado a separação ficou furioso. Tentou de várias formas convencê-la a não fazê-lo. Prometeu-lhe um palácio, jóias. Mas Meryem queria a liberdade e poder viver longe dos assassinos de seu pai.

Como uma última tentativa de impedir o divórcio, Meryem foi indiciada como adúltera pelo Sultão, que criou uma situação em que Meryem foi condenada a 100 chibatadas, junto com um dos jardineiros, pelo qual Meryem possuía um carinho especial.

Meryem conseguiu o divórcio somente aos vinte e dois anos, e foi deixada sem nada. Mesmo o que havia herdado de seu pai lhe foi negado. O que era pior, o Sultão não havia reconhecido o divórcio e ao encontrar com Meryem pela última vez, disse-lhe que ela jamais teria outro homem, pois para ele e para o Islam ela era ainda uma mulher casada.

Meryem sabia que não era assim que as coisas funcionavam, e que, mesmo aos olhos do Islam ela estava divorciada. Porém também sabia que o sultão tinha poderes suficientes para atrapalhar-lhe a vida muitas vezes.

Com a ajuda dos empregados que tinha, e de parentes destes, Meryem mudou-se para Izmir e estudou turismo e inglês. Começou a trabalhar em uma agência receptiva de turistas e aos poucos foi tornando-se guia.

Era fascinada com história e lugares e tentou várias vezes emitir seu passaporte para poder viajar. Durante o processo de emissão de passaporte, quando verificavam histórico em Izmir e Selçuk, os homens do sultão entravam em ação e seu passaporte era sempre negado.

Mesmo divorciada, ainda estava presa a um casamento que não escolheu, e sabia que estava assim pro resto da vida.

Ibraim ouvia a história com muita atenção, emocionando-se e não imaginando que uma mulher tão forte e bela como Meryem poderia ter passado por tanta coisa.

Ao final Meryem disse:

- O sultão é um homem louco e ainda com muitos poderes Ibraim. Não quero pensar o que faria se soubesse que andamos saindo. Para ele eu ainda sou sua esposa. Tenho medo inclusive por sua vida. Por isso quero que vá embora assim que terminar seu congresso.

- Meryem, eu não posso ir. Não tenho como deixá-la aqui. Eu darei um jeito. Você viria comigo para o Brasil? Digo, para viver para sempre. Não se assuste, não estou a chamando para casar comigo ou algo assim. Mas tenho certeza que consigo algo pra você lá.

- Eu não posso sair do pais. Não tenho passaporte, e acho que nunca terei.

- Mas você viria se tivesse?

- Sim. Iria para qualquer lugar para sair das garras do sultão.

- Então veremos.

- Ó Ibraim. Não sou mais uma menina que sonha tão alto. Hoje vivo de certa forma uma liberdade que nunca tive. Mas toda manhã ao acordar eu espero estar acordando em outro lugar, longe das garras dele. Quando passo por uma mesquita e vejo aqueles minaretes, eu sinto que estou sendo vigiada por ele. É como se o sultão estivesse em cada um dos minaretes. É uma situação opressante. Mas não sonho mais. Vamos aproveitar que você está aqui e quero lhe mostrar um lugar lindo. Deixe-me apenas ligar para ver se temos como chegar lá. Dá-me dez minutos.

Meryem tomou o telefone e discou para um conhecido. Conversava algo enquanto Ibraim aproveitava e fazia uma ligações para o Brasil.

Desligaram o telefone, desceram a torre, e caminharam rumo ao Bazar das Especiarias do outro lado do Bósforo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário