quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Capítulo II - Jasmim - Ásia Menor

O avião da British Airways aterrissou em Izmir dez minutos antes da hora marcada. Ele passou pela imigração, pegou a mala e procurou por Ibraim que deveria ter chegado em vôo vindo da Alemanha e pelos quadros de aviso do aeroporto, o avião da Turkish Airlines que vinha de Frankfurt já havia pousado uma meia-hora atrás. Passou pelas esteiras de bagagem uma a uma tentando ver nas etiquetas das malas que circulavam,  de onde elas vinham, pois os letreiros de cada esteira estavam apagados. Sua mala azul já estava ali. Continuou verificando as malas para ver se achava alguma de Frankfurt. Felizmente ele sabia de cor a maioria dos códigos de aeroportos europeus e Frankfurt devia ser FRA ou HHN. Havia malas de LGW (Londres Gatwick), DME (Moscou Dormedovo), SAW (Istambul Sabina), CDG (Paris Charles de Gaulle) e Esb (Esenboga Ancara). Nada de Frankfurt.

 Foi quando ele viu lá no último carrossel de bagagens, já vazio de malas, um homem magro, calvo, sentado em cima de uma mala vermelha, estava completamente absorto lendo um guia de viagens. Ele aproximou-se do rapaz, curvou-se, colocando seus lábios à altura do ouvido do outro e afinando a voz disse:

 - Você se lembra da minha voz? Continua a mesma, mas os meus cabelos, quanta diferença. – citando um comercial bem antigo de xampus, enquanto passava a mão na careca do irmão.

Ibraim levantou os olhos, viu o irmão e sorriu. Ficou em pé e deu um grande abraço apertado no irmão:

- Olha quem fala. Você também, não demora muito, e estará careca. Veja só as entradas. – Disse Ibraim abrindo a mão, entendendo os dedos, com o dedão encostado em um lado da testa do irmão e o dedo mindinho no outro extremo, forçando o cabelo do irmão pra trás, numa tentativa inócua de fazer a cabeleira farta desaparecer e mostrar o couro cabeludo.

Os dois sorriram e deram mais um abraço.

- Vamos que o traslado deve estar nos esperando. Disseram que estariam aqui às 14h. – Disse Ibraim ao irmão, enquanto ajeitava a mala para poder puxá-la.

O Aeroporto de Izmir não era grande, mas bem maior do que ele havia pensado. Logo que saíram do setor de bagagens e chegaram ao salão de desembarque viram vários homens com cartazes nas mãos. Cartazes de todos os tamanhos, cores e tipos. Alguns tinham nomes conhecidos de marcas famosas – apenas a marca e nada de nome de ninguém, outros tinham nomes comuns de pessoas e uma pequena parte com nomes escritos em alguma língua desconhecida, árabe talvez. Um rapaz magro e de barba escura carregava uma placa escrita "Ibraim Ramos". Indo até ele Ibraim apresentou-se. O rapaz apenas sorriu mas não disse nada. Pegou a mala da mão de Ibraim e fez sinal com a outra mão, como que chamando os dois para que o seguissem. Assim que saíram do aeroporto uma massa de ar quente vindo de todos os lados atingiu-os. Era o calor da Turquia, para ele pelo menos era uma mudança muito brusca. Havia deixado Londres horas atrás com a temperatura beirando os cinco graus e agora estava na Turquia com uma temperatura de uns 35 graus.

- Espero que o carro tenha ar-condicionado, disse ele à Ibraim.

- Devem ter, com o preço que pagamos. – Rebateu Ibraim vigiando atentamente sua mala nas mãos do rapaz de barba.

Entraram em uma van bem confortável, que tinha ar-condicionado e foram em direção a Selçuk, um vilarejo na região de Izmir. Izmir não era muito diferente a qualquer outra região subtropical do mundo. Montanhas baixas, árvores não muito grandes e uma aparência de seca. Não fosse um ou outro minarete – aquelas torres cilíndricas das mesquitas -  que apareciam aqui e acolá, ninguém diferenciaria aquela cidade de nenhuma outra. Mas Izmir escondia uma história de mais de 3500 anos, a moderna Turquia deve muito a ela pois essa cidade sempre foi a mais progressiva e evoluída de todo o país, dali saiam idéias de tolerância religiosa, igualdade de sexos, e outras modernidades que colocavam qualquer muçulmano de cabelo em pé e fizeram da Turquia o único país de maioria muçulmana em que o estado é completamente laico e onde as forças armadas existem principalmente para garantir essa separação do estado-religião como parte da soberanidade nacional.

Izmir fica na região oeste da Anatólia, com boa parte de sua economia voltada para o mar Egeu e seu grande porto. Andar pela região é andar pela história da humanidade, é voltar no tempo e entender as origens do ser humano, pelo menos as origens do que nos torna humanos, a cultura. Daquela cidade saiu Homero, o que escreveu a Ilíada e a Odisséia. E dali de certa forma boa parte da cultura greco-romana foi formada ou remodelada.

Ele olhava pela janela, tentando ler cada outdoor que via, prestando atenção em cada mesquita, em cada rua. Ibraim, por outro lado olhava fixamente para um ponto, reparava nos contornos da cidade, mas parecia ver outro tempo naquele mesmo cenário, estava calado. O carro andou um bom tempo beirando o Mar Egeu e assim como Jasão e os Argonautas navegaram aquele mar em busca do Velo de Ouro, Ibraim parecia navegar com seu olhar a procura de algo que também lhe restituísse a realeza perdida. O irmão notou que os olhos de Ibraim estavam cheios de lágrima mas não disse nada. Sabia muito bem o que o irmão estava pensando.

- Mamãe nasceu aqui. – Disse Ibraim, como quem falasse sozinho.

 Ele apenas sorriu para Ibraim. Sabia que o irmão sempre quis fazer essa viagem, e era uma viagem que deveria fazer só, mesmo estando acompanhado. Só quem perdeu uma ligação com o passado é que consegue entender a dor que a ausência de lembranças traz. E, apesar de sempre cercado de carinho, ele possuía esse vão em sua alma. "Mind the Gap. Cuidado com o vão", lembrou o irmão. Mas cabia a Ibraim preencher este vão ou cair nele. Não a ele. Por isso apenas sorriu novamente e disse:

- Pois é Turquinho, finalmente na terra da sua mãe.

Ibraim era carinhosamente chamado de Turquinho pelo pai e pelos irmãos mais novos. Filho do primeiro casamento de seu pai, Ibraim era dez anos mais velho que ele, embora a diferença parecesse maior, pois enquanto Ibraim aparentava uns anos a mais, o outro aparentava uns bons anos a menos. Ibraim nunca fora vaidoso e, não cuidava de detalhes da aparência, o que não quer dizer que fosse desprovido de beleza. Pelo contrário, era o mais belo dos três filhos de Miguel, alto com quase 1m90, naturalmente em forma, fazia vários esportes ao ar livre e estava sempre bronzeado. Possuía olhos verdes, meio oliva, que junto ao rosto queimado e sempre barbeado davam lhe uma aparência bela, só destoavam uma sobrancelha que necessitava uma pequena aparada, um corte de cabelo antiquado e roupas mal cuidadas. Também carregava uns óculos muito pesados, mas o que realmente lhe dava um ar de mais velho eram os cabelos, ou a falta deles.

Os cabelos realmente haviam ficado grisalhos desde os vinte e poucos anos, mas a cada novo encontro, Ibraim estava mais e mais careca. Desta vez não havia um fio de cabelo sequer na parte superior da cabeça, abrindo um caminho bem delineado entre a testa e a nuca. O irmão parecia ainda mais velho e a cada dia lembrava mais ainda o próprio pai.

Ele notava que Ibraim, além da semelhança visual, apresentava também o mesmo jeito de andar – passos curtos e ligeiros, a mesma forma de falar, rápido, sem respirar e movimentando as mãos freneticamente, e no rosto a mesma feição preocupada e sisuda do velho Miguel. Tal aparência ajudava a dar tranqüilidade aos pacientes dizia Ibraim, rindo de si mesmo. Ele era médico e pesquisador.  

Ibraim decidiu ser médico ainda cedo, motivado certamente pela morte precoce de sua mãe. Ele não havia escolhido a medicina, dizia ele, mas a medicina o havia escolhido. Apesar de ter herdado as feições e temperamentos do pai, era impossível entender Ibraim e suas decisões na vida sem conhecer sua história e principalmente a história de sua mãe: Jasmim.

Jasmim era uma mulher fascinante, cheia de vida. Filha única de uma família abastada de Izmir, graduou-se em Línguas Latinas pela Universidade Ege, uma das mais antigas e renomadas da Turquia. Logo depois de graduar-se seguiu uma extensa rotina de aperfeiçoamento lingüístico em universidades de Paris, Salamanca, Roma e Coimbra. Além do turco, sua língua-mãe, do grego e do curdo que eram falados aqui e ali pela Turquia, ela falava com precisão as principais línguas românticas. Por fim Jasmim trabalhava para a Presidência da República Turca em Ancara, a capital do país, e participava freqüentemente de missões aos países de língua latina.

Uma certa vez Jasmim participara de uma recepção para o presidente turco no Palácio do Itamaraty, em Brasília. Com seus cabelos negros e longos, pele morena e olhos escuros, vestindo um longo vestido típico, de seda e tendo um véu, não cobrindo os cabelos, mas levemente caído sobre os ombros, Jasmim parecia apenas uma outra mulher muçulmana. Mas ela era diferente das demais que ali estavam. Ela era ativa, falante, contagiante e aparentava uns dez anos mais jovem que os 35 Ramadãs que havia vivido. Um grupo de pessoas a rodeava, escutando-a e questionando-a sobre as histórias que contava, ela parava, respondia agradavelmente a pergunta e continuava a história, emendando uma história na outra de forma tal que lembrava Sherazade nas Mil e Uma noites.

Naquela recepção os principais empresários do país que mantinham negócios com a Turquia estavam presentes, e Miguel – dono da maior exportadora de frango pra Turquia - estava lá. Ele ouvia cada palavra que Jasmim dizia, viajava em suas histórias pela Turquia, Grécia, pela então União Soviética, ela contava detalhes de cada lugar, de cada passeio, falava também sobre o que pensava do estilo de vida brasileiro, sobre a guerra fria, sobre as ditaduras latino-americanas, sobre a arquitetura daquele edifício onde estavam, sobre aquela escada ali no salão que parecia ter os degraus flutuando... Os assuntos variavam imensamente, mas pareciam estar concatenados de tal forma que eram uma história só, contada em capítulos. Cada palavra que dizia enfeitiçava mais e mais a Miguel e a  todos os ouvintes. No final da noite Miguel estava completamente apaixonado. Jasmim, já madura e solteira, não tinha planos de casamento. Adorava a vida livre e solta que pouquíssimas mulheres muçulmanas podiam levar, porém ficou intrigada com aquele insistente Miguel e aceitou o convite para um almoço no dia seguinte.

Almoçaram no Francisco que ficava em um clube à beira do lago Paranoá. Jasmim estava felicíssima por estar naquele restaurante, famoso no mundo todo – pelo menos no mundo diplomático, dizia ela, não apenas pela comida, mas pela arquitetura, pois o restaurante ficava em uma plataforma de concreto que "flutuava" sobre o lago. Miguel, meio envergonhado falou que embora almoçasse ali toda semana, nunca tinha ouvido falar disso. Nos próximos três dias de visita oficial eles se encontraram várias vezes, foram passear pelo Parque, andaram pelas margens do lago, foram ver o pôr-do-sol na Ermida e no outro dia no mirante da torre. Foram ao teatro, ao cinema e ao clube de choro, até em um show alternativo de um enfermeiro do Hospital de Base que se travestia e cantava com uma voz tão bela e com tamanha interpretação que fez com que Jasmim se apaixonasse pela música brasileira.

Foram dias intensos e profundos. Tão intensos que ao fim da viagem, Jasmim pediu e conseguiu ser transferida para a embaixada de Brasília. Sequer voltou à Turquia para buscar suas coisas. Em menos de seis meses eles já estariam casados. Os pais dela tentaram de todas as maneiras dissuadi-la a casar com um infiel não seguidor do Islã, mas ela não arredou pé e conseguiu até as bênçãos e o apoio dos velhos, que vieram de Izmir para um casamento cristão, pois a essa altura Jasmim havia abraçado toda a cultura e religiosidade brasileira.

Os dois viviam como dois casais de namorados, intensa e apaixonadamente, Jasmim largou o trabalho na embaixada e passou a ser professora na Universidade, mas isso não impedia que viajassem pelo mundo, divertiram-se muito e jamais brigaram. "A gente não tem tempo pra brigar", dizia ela. Apenas uma coisa entristecia o casal, por mais que tentassem Jasmim não conseguia engravidar. Consultaram os melhores médicos de três continentes e nada de criança. Foram a um centro espírita, ao Vale do Amanhecer e até na Cidade da Paz. Nada resolveu. Ela queria muito ser mãe, e Miguel queria muito um filho. Eles haviam nascido para serem pais, mas os céus pareciam não concordar com isso.

Após mais uma tentativa frustrada foram viajar e rever os parentes e amigos na Turquia. Ficaram hospedados na casa dos pais de Jasmim, em Izmir, na Ásia Menor. Era Ramadã e a cidade ficava calma e lenta durante o dia. Principalmente nos restaurantes e lanchonetes só se viam turistas. Mas de noite várias festas e banquetes eram oferecidos por toda a região, lojas locais abriam e o povo saía de casa. Foi em uma das festas aos arredores da Mesquita Hisar que encontraram um casal de franceses. Um casal que estava ali para ir a Éfeso e principalmente para conhecer a "casa de Maria" - uma casa onde a Virgem Maria teria vivido quando São João a trouxe da Galiléia para a Ásia.

Jasmim havia morado em Izmir praticamente toda a vida e jamais havia ouvido falar de tal lugar. Sabia da história de João, pois perto da casa de sua avó ficavam umas ruínas do século IV de uma basílica dedicada ao santo, que seria onde estaria seu túmulo. Mas nunca ouvira falar de Maria por ali. Desde que fora para o Brasil que Jasmim cultivava uma certa afeição com o cristianismo. Havia até sido batizada. Não havia convertido-se integralmente, mas pensava na hipótese, afinal havia se casado com um católico, em uma cerimônia católica e Miguel já deixara claro que os filhos seriam criados católicos. Era a promessa que ele tinha feito durante o casamento e Miguel não quebrava promessas. Jasmim, ainda na escola muçulmana aprendera a ter uma certa veneração pela Virgem – a mãe do profeta Jesus segundo ela aprendera. Ela era até citada no Alcorão. Ficava intrigada e ao mesmo tempo curiosa com as histórias que ouvia.

O casal continuou dizendo que desde o início do cristianismo que o povo acreditava que ali havia vivido Maria, tanto que nos primeiros séculos, os primeiros bispos cristãos reuniram-se ali em Éfeso e, em um concílio afirmaram que Maria era Teotokos. Para Jasmim que sabia grego muito bem, a palavra "Teotokos", algo como "mãe de Deus" era muito forte de se ouvir e mais difícil ainda de entender. Conversaram sobre outras coisas, sobre viagens e sobre o Brasil. E por volta das onze horas caminharam com os franceses até o hotel onde estavam e despediram-se.

Aquelas palavras ficaram ecoando em sua cabeça. Naquela noite praticamente Jasmim passou em claro, não conseguia tirar a imagem de uma casa de sua mente. Os barulhos dos tambores do Ramadã também não ajudavam. Tocavam a noite toda e principalmente uma hora antes do amanhecer, para que os fiéis muçulmanos acordassem, comessem e bebessem antes do nascer do sol. Ela ouvia o ressoar dos tambores e no seu ouvido o barulho que faziam era "teo – to – kos, teo – to – kos, teo – to – kos". Ela levantou-se, ceou com os demais da casa e não se recolheu como todos os outros o fizeram.

Ela, mesmo não sendo mais uma seguidora do Livro, cumpria algumas regras e rituais quando estava na Turquia ou em outro país muçulmano, por respeito à cultura do local. Mas internamente ele detestava a idéia de jejuar durante o Ramadã, não podiam sequer beber água durante todo o período do dia, durante todo o mês do Ramadã. "Parecemos vampiros", dizia ela, mesmo antes de largar o Islam. "De noite festejamos, comemos, dançamos e com o nascer do sol, escondemo-nos em nossas cavernas e ficamos aguardando o ocaso do dia para começarmos a farra novamente".

Pegou a chave do carro que ela e Miguel haviam alugado e saiu antes mesmo do sol começar a nascer. Deixou Miguel em Izmir ainda dormindo. Apenas escreveu em um pedaço de papel: "Fui à casa de Maria". Dirigindo sozinha, em um país onde mulheres praticamente não atreviam-se a colocarem-se por detrás de um volante, foi até Éfeso. Uma hora e meia de viagem, na estrada vazia. Passou por algumas cidadezinhas e chegou em Selçuk. Lá tomou a estrada que ia até Éfeso.

Éfeso era apenas ruínas. Uma das mais importantes cidades da antigüidade ainda guardava em suas ruínas uma imponência e superioridade indiscutíveis. Jasmim parou o carro na entrada do parque arqueológico, estacionou em frente a umas lojas de lembrancinhas. As lojas, os portões e a bilheteria ainda estavam fechados, nenhuma alma viva por perto, mas mesmo dali da entrada era possível ver o imenso teatro de arena, a biblioteca de Celso e outras dezenas de edifícios. Mas a casa de Maria não era bem ali, os franceses haviam dito que era perto de Éfeso, mas não dentro da cidade. Voltou para o carro e ao abrir a porta notou na beira da estrada uma pequena placa escrita à mão, em turco, "Meryem Ana Evi", algo como "Casa da Mãe Maria"  e uma seta apontando para uma parte mais acima no morro.

Ela entrou no carro e dirigindo morro acima, foi seguindo o caminho indicado pelas placas até finalmente depois de algumas voltas encontrar o lugar. Havia um estacionamento pequeno e lá mesmo ela abandonou o carro. Não eram 7 horas da manhã ainda. Um pequeno café, estranhamente chamado "Café Turco", assim mesmo em português, e uma lojinha de souvenires estavam ainda fechados. Andou mais um pouco e um caminho florido com rosas levava para uma pequena casa que ela pensou estar abandonada. Na entrada da casa, sentado em uma cadeira, um guarda dormia.

Ela entrou na casa sem acordar o guarda. A casa parecia uma capelinha. Uns quatro banquinhos jogados próximo as paredes laterais, dois genuflexórios, um de cada lado. Uma vela acesa em  em um aparador no fundo da sala era a única luz. Ela sentou-se em um banquinho e ficou ali olhando, imaginando se seria aquele o tal lugar. O sol começava a bater ao lado da casa, e alguns feixes de luz entravam pela janela esquerda, iluminando todo o cômodo e fazendo com que a vela já não parecesse tão forte. Jasmim ficou olhando os feixes de luz e a vela, sem entender direito se estava no lugar certo. O lugar parecia ser tão pacífico... uma pequena borboleta amarela entrou pela janela e voava como se brincasse com o feixe de luz, passando por ele, indo para a sombra e voltando para o sol. A borboleta passou para o outro cômodo e Jasmim ouviu um riso de criança. A borboleta voltou para o cômodo onde Jasmim estava e o riso acabou. Mais uma vez a borboleta foi para o outro cômodo e a criança ria mais alto. Uma lágrima escorreu do rosto de Jasmim, ela lembrava da criança que não poderia ter, da mãe que não seria, sentia apenas um vazio em seu ventre. "Não chore Jasmim.", disse alguém. Ela virou-se e em pé ao seu lado havia uma mulher, uma mulher, uma senhora aparentando uns 70 anos. Ela falava em turco, com um leve sotaque árabe. A senhora continuou falando e disse que ter um filho pode ser um processo muito dolorido. "Algumas vezes", disse a senhora, "é como ter uma espada atravessando sua alma. Mas também vê-lo nascer, o primeiro sorriso, aprendendo a andar, aprendendo a ler... são dádivas impossíveis de serem esquecidas".

Jasmim conversou com a senhora por horas, falaram principalmente sobre filhos e pais, sobre as crianças abandonadas, sobre as que perdiam sua infância trabalhando como adultos. Andaram um pouco ao redor da casa, sentaram embaixo de uma árvore, perto de umas fontes de água e a senhora falou:

- "Temos de ter muito cuidado com o que desejamos, pois os desejos podem tornar-se realidade. Cuidado com o que pedimos, pois os nossos pedidos podem ser atendidos. Você quer muito um filho, mas não viverá tempo suficiente para vê-lo crescer e tornar-se homem. Você terá um filho Jasmim. Mas infelizmente essa doença que você carrega em seu sangue não lhe dará muito tempo com ele. Mas não se preocupe, ele será muito amado e se converterá em um homem justo." - Apontando para umas fontes com água que jorravam da mesma pedra onde a casa estava construída ela disse: "Você não tem sede? Tome dessa água, vai lhe fazer bem".

Jasmim hesitou um pouco, por causa do Ramadã – já era dia e os muçulmanos não bebiam água durante o dia no mês sagrado. Ao ver a senhora tomando a água sem nem hesitar, Jasmim levantou, dirigiu-se à fonte, lavou as mãos e os braços algumas vezes como os muçulmanos faziam e bebeu um pouco da água.

A água era de um frescor jamais visto, Jasmim não imaginava que estava com tanta sede, bebia e sentia a água percorrendo seu corpo, refrescando cada parte do seu corpo por onde a água passava. Em pouco tempo sentiu a água chegando ao sangue e o sangue sendo bombeado pelo coração. Sentiu então uma dor no peito por alguns segundos que logo transformou-se em uma sensação indescritível de prazer e leveza. Parecia estar flutuando, como se não tivesse corpo.

Quando virou-se para falar com a senhora, não havia ninguém ali. Jasmim secou-se. Voltou para a casa e só havia o guarda dormindo na porta. Olhou para o relógio e viu que somente cinco minutos haviam passado desde que chegara ali. Mas ela tinha certeza de ter conversado por horas! Entrou novamente na casa, dessa vez acordando o guarda e a casa estava vazia. Desceu as escadas correndo e foi para o carro. Pegou uma garrafa de água mineral que estava no carro, jogou fora a água que lá estava e voltou até a fonte ao lado da casa. Encheu a garrafa daquela água e voltou para o carro. Dirigiu de volta com um sorriso nos lábios e uma alegria incontrolável. Tinha a certeza de que estava grávida.

Jasmim chegou em casa e encontrou Ibraim preocupado e andando pra lá e pra cá. Assim que a viu ele correu para ela e ela o abraçou chorando. Ele mais preocupado ainda perguntava a ela o que havia acontecido, por que ela chorava tanto. Ela sem conseguir parar de chorar de tanta felicidade disse:

- Vamos ser pais Miguel! Vamos ser pais!

Miguel não acreditava no que ouvia, mas sorria e ria com a alegria contagiante de Jasmim. Na semana seguinte, já no Brasil, a confirmação: Jasmim estava realmente grávida.

Quando Jasmim ficou grávida as preocupações começaram. Foi um período difícil e doloroso. Ela quase perdeu o bebê três vezes. Mas não deixou-se abalar e mesmo sabendo que seria complicadíssimo e perigoso ela manteve a gravidez até o fim. Todo dia ela tomava um pouco da água que estava na garrafinha que havia trazido de Éfeso, diluía algumas gotas em um copo de água filtrada e, segundo ela, isso lhe dava forças para passar o dia e fazer o que mais gostava: Escrever cartas. Durante os nove meses ela escreveu cartas e mais cartas ao pequeno Ibraim que carregava dentro de si. Em suas cartas ela contava de sua infância na Capadócia, de viagens que havia feito por toda a Ásia, suas aulas na Mesquita, seus sonhos e como se apaixonou pelas línguas. Escrevia sem medo sobre suas duras impressões sobre o Alcorão e o Islã, mas também falava de coisas belas que havia na religião muçulmana, como a esmola, o zelo pelas viúvas e pelos pais. Contava-lhe como amava Miguel e como queria que Ibraim o amasse. Por volta do fim do meio dia de uma tarde seca de agosto Jasmim começou a sentir as dores, pacientemente terminou a carta que escrevia enquanto chamava Zuleide, a empregada que já estava com ela desde que se casara com Miguel quase 10 anos atrás e pedia que chamasse um táxi e pegasse a mala que já estava pronta no closet. Fechou a carta, colocou-a em um envelope e junto este às dezenas de outras cartas que estavam em uma caixa de sapatos. Todas numeradas e endereçadas a Ibraim, com exceção de duas, uma endereçada à Miguel e outra à doutora Miriam, sua obstetra. Deixou a caixa de sapatos em cima da mesa e a carta para Miguel em cima da caixa, colocou a outra na bolsa e finalmente ligou para o marido e disse que já estava indo para o hospital. Tomou o último gole da água que restava na garrafinha, fechou a porta do apartamento e junto com Zuleide foi para o térreo esperar o táxi.

Miguel chegou esbaforido ao Hospital de Base, sedento por notícias. Não conseguia achar Jasmim, quando viu Zuleide entregando uma carta a uma médica. Ele foi até ela e perguntou insistentemente sobre Jasmim. Zuleide levou-o até o quarto onde ela estava. Jasmim estava sentada na cama vestindo uma camisola de hospital. Ela sorriu para Miguel e ele sorriu de volta lembrando-se da primeira vez que a viu. Não podia estar mais feliz. Ela fez sinal para que ele chegasse mais perto e fez uma mímica dizendo que queria falar algo no ouvido dele. Ele chegou perto e abaixou-se pra ouvir.

-Miguel... Você sabe que o amo muito. E não tenho dúvidas do seu amor por mim. Eu já informei à doutora Miriam minha opção e espero que você entenda e aceite. Cuide de Ibraim, encontre uma boa mãe para ele... – Disse Jasmim em uma voz firme mas com os olhos cheios de lágrimas. Segurou o choro, respirou fundo e abraçou Miguel e beijou-o.

Ela o fez prometer coisas difíceis de serem cumpridas: que seria feliz e jamais culparia o menino pela ausência dela. Os dois ficaram abraçados e chorando por uns bons cinco minutos. Jasmim não tinha contado nada a Miguel até então, mas ele entendeu tudo: Ela provavelmente não sobreviveria ao parto.

Jasmim foi levada para uma área onde Miguel não podia entrar. A doutora Miriam veio até ele e explicou que ainda levaria umas 12 horas até que começassem a cesariana, pois precisavam esperar os medicamentos fazerem efeito. Ela não resistiria por cinco minutos em um parto normal. Com a cesariana o bebê estava salvo e ainda tinham uma chance remota de salvar Jasmim.

Miguel saiu cambaleando e foi desnorteado até o estacionamento. Entrou no carro e ficou sentado, parado olhando para frente. Pensava em Jasmim e ia lembrando-se de todos os momentos que viveram desde aquele jantar no Itamaraty. As lágrimas corriam sobre seu rosto quando lembrava da alegria de Jasmim em Izmir ao anunciar-lhe que estava grávida.

Ele rezou como nunca havia rezado e voltou para casa. Saiu do carro e foi até a capela do hospital onde encontrou Zuleide rezando. Ajoelhou-se como não fazia há anos e meio sem graça começou a conversar em pensamento, pedindo mais tempo para Jasmim.

Algumas horas se passaram e ele continuava lá sentado, olhando para a imagem de Nossa Senhora Aparecida e para uma luzinha vermelha lá no fundo em cima de uma caixinha dourada.

Zuleide convenceu-o a ir comer algo,  foi até a lanchonete do hospital, pediu um misto quente e uma água. Ao levantar a garrafa de água mineral para tomar um gole ele lembrou-se da água que Jasmim tomava todos os dias, da garrafinha que trouxera de Éfeso. Ele uma vez perguntou como aquela água não acabava e ela respondeu que era um milagre. Porém um dia ele viu Jasmim colocando água do filtro na garrafa e entendeu que ela sempre completava aquela garrafinha. No princípio pensou nas bactérias e outras sujeiras, mas depois relevou e não falou nada para Jasmim. Deixou ela com seu milagre.

Deixou o sanduíche no prato e foi até o caixa comprar umas fichas telefônicas, era uma situação complicada e não queria falar com ninguém, mas sabia que não tinha o direito de esconder tudo o que acontecia de algumas pessoas. Fez três ligações, uma para sua mãe, uma para sua secretária no trabalho, dizendo que não voltaria e que provavelmente ficaria afastado alguns dias e uma para um casal de amigos.

Voltou à sala de espera do hospital e conversou com um dos médicos que passava por ali, que por sua vez foi até o centro cirúrgico e quase meia hora depois voltou explicando que estava tudo ainda dentro do normal, mas que ainda demoraria pelo menos 4 horas para que tivessem algum resultado.

Lembrando que ainda precisava avisar os pais de Jasmim, resolveu ir até em casa, onde poderia fazer uma ligação internacional, já que do orelhão do hospital só era possível fazer ligações internacionais à cobrar, via telefonista.

Zuleide disse que iria em sua casa apenas para deixar o filho com a vizinha e voltaria. Miguel insistiu para que ela passasse a noite na casa dela, e voltasse somente no dia seguinte. Zuleide foi mais insistente ainda e disse que não podia dormir em uma situação dessa. Miguel deu uma carona a Zuleide até a estação rodoviária e foi em casa para fazer o telefonema.

Tudo parecia estar em câmera lenta, os carros à sua frente nas ruas onde passava pareciam ter parado no tempo, bem como ele também sentia como se manejasse lentamente o veículo. Na lentidão daquele dia de seca, finalmente entrou na quadra e estacionou o carro do lado de fora, sem colocá-lo na garagem. Ele raramente vinha em casa durante o dia em um dia de semana e tudo era diferente. As crianças brincando no parquinho, alguns jovens sentados na grama conversando e rindo, na pracinha do outro lado alguns velhinhos caminhavam. Era tudo muito surreal e destoante da correria das seis horas da tarde, além de muito, mas muito mais iluminado e quente. Entrou no elevador, coisa que raramente fazia pois morava no primeiro andar, e enquanto o elevador subia ele lembrava das vezes em que ele e Jasmim saiam para ir ao teatro, ao cinema, a um concerto ou simplesmente para jantar fora. Eram praticamente as únicas vezes que usava o elevador e sempre estava com Jasmim.

Abriu a porta e entrou. Passando pelo hall viu na mesa da sala a caixa de sapatos. Chegou perto e tomou em suas mãos a carta endereçada a ele em cima da caixa. Ao lado da caixa a garrafa de água vazia. Abriu a carta e começou a ler. Na carta Jasmim explicava tudo o que acontecera em Éfeso e que mesmo antes da viagem já havia sido diagnosticada com uma doença no sangue, uma espécie de leucemia. A gravidez adiantou e muito a doença, segundo os médicos ela poderia viver mais alguns anos sem a gravidez, mas, estando grávida, dificilmente chegaria ao sexto mês. Ela tinha certeza de que a criança nasceria perfeita, embora todos os médicos haviam desaconselhado a manter a gravidez.

Ela pensou em contar isso à Miguel milhares de vezes, mas tinha receio. Sabia que ele ia sofrer, que ele não iria aprovar a escolha que tinha feito. Ela então pedia ali na carta mais uma vez que ele jamais, nunca jogasse no pequeno Ibraim, citando o nome pela primeira vez e colocando um pequenino sorriso no rosto triste e amargurado de Miguel. Disse também que a doutora Miriam havia jurado que nada contaria à ele e que ela acataria a vontade que Jasmim manifestasse.

Escreveu também sobre as cartas que escreveu ao futuro filho. Eram cento e quarenta e quatro cartas, numeradas e com datas ou momentos certos para serem abertas. Miguel deveria ler as cartas ao menino enquanto este não soubesse ler. Depois entregaria ao filho para que ele mesmo as lesse. Embora Jasmim estivesse o tempo todo preparando-se para a sua morte,  jamais foi negativa, mórbida ou demonstrou tristeza.  Mesmo enquanto escrevia as cartas para o filho, o fez com tanta alegria e transbordando de amor que as cartas eram carregadas desses sentimentos.

Durante os meses da gravidez foram os meses em que Miguel a viu mais feliz. A vontade de ser mãe, de gerar um novo ser, garantir-lhe espaço e saúde era maior do que a vontade de existir. E, mesmo sabendo que não desfrutaria da presença de seu filho, ela já, antecipadamente vivia as alegrias de cada fase pela qual o menino passaria.

Miguel sentou-se à mesa e ficou ali com a carta na mão, olhando para a carta mas não a vendo, seu pensamento ia longe, totalmente desordenado ia ao passado e ao futuro, voltava ao dia em que a conheceu, ia a um futuro distante sem ela. Levantou os olhos cheios de lágrima e reparou no apartamento. Ele havia sido totalmente decorado por Jasmim. A presença dela estava em todo lugar. Na almofada, no abajur, na mesa da sala, no quadro da parede. Virou-se para a grande janela e viu o frondoso ipê amarelo que Jasmim tanto gostava. Ela dizia que ela passaria por inúmeros dias de seca se preciso fosse, só pra ver um ipê todo florido de amarelo.

Levantou-se, foi até a janela, deu uma última olhada no ipê-amarelo, respirou fundo e foi buscar a caderneta telefônica para ligar para os pais de Jasmim. 

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